Blog do Carpinejar

ELE NÃO CONTA AONDE VAI

Arte de Cínthya Verri

"Olá! Tenho 41 anos e sou casada com um homem de 62, há cinco anos. Desde que ele se aposentou, passa o dia fora de casa. Quando volta, e pergunto o que ele fez no Centro o dia todo, responde que não tem que dar satisfação e para me colocar no meu lugar. Pergunto: qual é o meu lugar? O que posso fazer para mudar essa situação que está fazendo com que nosso relacionamento termine? Obrigada. Beijo. Vera”.

Querida Vera,

Ele tem a convicção que não vai terminar o relacionamento – este é o segredo da tirania. Acredita que não tem escolha.

Eu colocaria os naipes na mesa: ou você muda e me descreve sua rotina ou eu vou embora e você tampouco saberá meu caminho. Uma chantagem eventual tem seu charme.

Não é uma enfermeira suportando alguém seriamente doente, ele está ofendendo com saúde, e de graça.

Amor não é assistencialismo, no qual amamos pelos dois. Amar pelos dois é egoísmo. Não pode conceder a ele a doação irrestrita dos seus dias.

Impossível seguir permitindo os desmandos caseiros, onde um fala e o outro cala. Ao casar, assumimos o compromisso da explicação. Danou-se a soberba adolescente. Ninguém mais sai de casa sem avisar. É etiqueta amorosa. Há o compromisso de tranquilizar o par, ainda mais se ele é ansioso ou desconfiado. Todos têm o direito de enlouquecer uma hora, só que a loucura deve ser educada. Pode bater a porta, abandonar a cena urrando, porém nunca omita o seu destino.

Mas vou lhe contar algo surpreendente. Com a fachada de machista e autoritário, ele brinca de ser importante. É pura carência. Quer chamar sua atenção.

Adivinha o que ele faz de tarde? Nada. Só que tem vergonha de dizer e cria mistérios para fingir que não envelheceu.

O sádico é um masoquista recalcado. Ele vem sofrendo com o fim do trabalho e não aprendeu a pedir ajuda. Está mentindo, buscando convencer a si mesmo que tem liberdade.

Seu marido padece de tédio, não liberdade. Liberdade é ter o dia ocupado com aquilo que a gente gosta.

Abraço com toda ternura,
Fabrício Carpinejar

Querida Vera,

Era uma vez uma senhora que perdeu seu marido. Inconsolável, a viúva visitava o túmulo todos os dias. Perdera o companheiro leal de sua vida.

Certo dia encontrou uma outra pessoa chorando sobre a lápide dele. Aproximou-se e verificou: sim, uma mulher estava de luto fechado. A viúva perguntou:

– Desculpe, mas eu não posso imaginar como isso seja possível. Meu marido nunca deixava a casa, apenas para o trabalho. A rotina era total: das oito às seis, sempre, sem faltas. Funcionário exemplar.

Não vejo como ele poderia ter uma amante! Deve haver algum engano.

– Não há, infelizmente, nenhum engano! – respondeu a outra soluçando – Sabe o intervalo do cafezinho?

Nossas vidas são imprevisíveis, variadas, por mais que se pareçam muitas vezes na superfície.

Casados há cinco anos: é uma titulação a ser respeitada. Significa que nos últimos 1,8 mil dias vocês fizeram por merecer, ajeitaram as diferenças. Fica nítida a capacidade que tiveram para construir um cotidiano que funcionava para ambos.

Mas algo mudou: chegou a aposentadoria. As coisas não são mais como antes. Ele passa o dia fora em lugares desconhecidos. E você se sente perdida.

Por quê? Será que tinha planos para a aposentadoria dele? Sonhava que ele teria mais tempo para se dedicar ao casal, uma alegria mansa, um café da manhã sem pressa, a tarde inteira lhe fazendo companhia enquanto corria a máquina de costuras, viagens sem destino, aventuras? Será que almejava um descanso largo para dois?

Não será este o maior choque – entender que nunca soube o paradeiro dele, apenas que imaginava conhecê-lo. Verdade seja dita: ele poderia mentir. Isso a deixaria mais calma?

Beijos meus,
Cínthya Verri

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 22/07/2012 Edição N° 17138

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