EMPLASTRO DE MARIO QUINTANA
Velório sem defunto é Memórias Póstumas de Brás Cubas de Mario Quintana (1906-1994), o maior dos poetas gaúchos. Seu derradeiro testamento, última obra adulta publicada (1990).
Representa um enterro sem cadáver. Ou suspiro de um defunto, ainda vivo, lembrando como morreu.
Quintana se fingia de morto para ser sarcástico. É estranho ler a coletânea quando ele não está mais entre nós: escreveu como se estivesse morto e, agora morto, parece vivo.
Literatura é mesmo prestidigitação.
Assim como o personagem de Machado de Assis, o livro apresenta um inventário dos desenganos vindo de voz sábia e calejada, numa conversa franca e inadiável com o leitor.
É a destruição da farmacologia do desespero pelas dúvidas fitoterápicas. Mario Quintana, que foi farmacêutico em Alegrete na juventude, destrói fórmulas de emplastro e receitas de auto-ajuda destinadas a aliviar a nossa melancólica humanidade.
A morte para ele não é triste, nem trágica, é um mistério necessário ("as coisas sem nome") para respeitar a vida.
Sem a morte, a vida não seria valorizada. Seria agredida, banalizada, esgotada.
Sua teoria tem consistência existencial: morrer é parcelado, é acreditar naquilo que se viveu para aceitar — devagar — o que não podemos fazer.
O autor une as pontas da infância e da velhice. A forca é a mesma corda de pular. A curiosidade de menino com o fim do dia é a mesma curiosidade do velho diante do final da vida.
"Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança
— Tenha ela oito ou oitenta anos!"
— Tenha ela oito ou oitenta anos!"
Morrer é apenas continuar fugindo de casa. Algo que aprendemos a fazer desde pequeno, quando arrumamos a malinha e caminhamos algumas quadras até a praça e voltamos depois, longe de ganhar atenção da própria família. Quem não passou por isso: fugir e não ser notado pelos pais?
Poeta é um bicho perturbador da ordem. Não cria dicionário, porém cria gramática.
Há toda uma gramática peculiar de imagens de Mario Quintana, que aproximou a clássica poesia brasileira (sonetos e canções) da irreverência inteligente e do humor filosófico.
Há toda uma gramática peculiar de imagens de Mario Quintana, que aproximou a clássica poesia brasileira (sonetos e canções) da irreverência inteligente e do humor filosófico.
Quintana permitiu a aparição verbomágica de Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Cacaso.
Com sua passagem, o cotidiano finalmente explodiu de transcendência.
Ele é capaz de ver o sol mijando ou de encontrar alívio catártico proseando com a mesinha de pinho (a escrivaninha é seu confessor).
É uma coleção de despropósitos carregados de sentido.
Mario Quintana ri e fala sério ao mesmo tempo. Trata-se de uma alma de violoncelo escondida num pandeiro.
Admirável humanização que se estende a cada verso. Ler o poeta é perdoar os defeitos; é não querer ser melhor do que os outros, mas melhor para si.
Anarquista por hábito e estilo, luta contra o tédio da perfeição, promove os problemas, defende a importância das dificuldades da rotina.
Anarquista por hábito e estilo, luta contra o tédio da perfeição, promove os problemas, defende a importância das dificuldades da rotina.
Por mais que os amores sejam idealizados, acordar dos traumas é a sua verdadeira paixão. Ele torce as palavras, investiga o avesso, estabelece paradoxos. Não teme enfrentar a irritação cotidiana. Não subestima os desastres familiares. Sua impaciência é honestidade. Tem noção de que viver é fácil, conviver é que complica o jogo.
“A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!”
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!”
Velório sem defunto é um manifesto pela liberdade da incomodação. Não se acomode, questione, seja chato. Só o chato é independente.
"É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas..."
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas..."
O escritor derruba poemas pelo caminho, como se segurasse uma jarra de suco excessivamente cheia. Ele transborda escrevendo pouco. Passa a imagem de plenitude com o mínimo. Mata a gula com farelos. Salva o suicida pela unha.
Neste volume, elaborou o mais plástico e equilibrado conjunto de sua trajetória. O mais quintaneiro. Aquela súmula lírica que une versos soltos, fixos e aforismos.
Quintana brinca de brigar.
E morre somente para ressuscitar e pregar de susto seus amigos.
Prefácio para nova edição de "Velório sem defunto"
Alfaguara Brasil, 2013, 98 p. R$ 29,90