Blog do Carpinejar

ENTERRADO VIVO

Arte de Rufino Tamayo

A tomografia computadorizada é um ensaio do velório.

Quem já fez o teste concordará comigo. Oferece uma experiência singular de impotência.

Quando deitei na cama branca do aparelho, eu me vi desamparado, me vi inferiorizado, me vi vulnerável, deparei com minha fragilidade em sua pureza mais remota. Uma sensação anterior à infância. Talvez adquirida no útero materno.

Eu era um mosquito sendo apanhado por duas mãos, mas ainda não esmagado. Um mosquito preso em seu último voo. Abafado pelos dedos de Deus.

Então, sou isso? Esse conjunto quebradiço de carne e osso que não tem noção do que há por dentro e que segue desinformado do próprio corpo? Isso? Essa coisa almada?

Busquei espantar a tristeza aparente, mas o lugar não permitia conversas. As palavras não foram autorizadas a entrar comigo.

Passaria pelo túnel tempo suficiente para descobrir que sou finito. O auxiliar pediu que cruzasse os braços no peito enquanto a máquina reproduziria meu cérebro. A impressão é de que repousava em meu caixão e ia sendo levado pelos amigos. Ouvia nitidamente as argolas de prata batendo no casco da madeira.

Não estava nu, quem dera, vivia a pior nudez, a da camisola do hospital, fina e intrusa como uma casca de ovo. Aquela cena rascunhou minha morte. É uma solidão sem família. É aterrorizante realizar o exame de tomografia pela monotonia fúnebre. Pela ausência absoluta de sentido.

Obedecer é o que me resta, sou fantoche do desespero, perfumado à toa, sem mais uso de minha mulher:

– Mais de lado, para esquerda, olhando para cima –, o técnico orientava e eu prontamente atendia suas ordens.

Nem precisa de memória, de imaginação, para se enquadrar nos gestos e nas talas. Assumo uma passividade monstruosa, onde não discuto nada com medo de provocar o pior.

Deitar e esperar, com as mãos firmes e tensas algemadas no tórax. Breves minutos que reprisam as contradições da vida, as incertezas, os engasgos da dor, se fui bom ou ruim, se serei lembrado com vigor ou sofrerei o descaso natural dos parentes.

Mergulhar com a cabeça no interior do tubo, como quem ingressa na sepultura. Como quem abre um lugar na parede do São Miguel e Almas.

Com o início do exame, escutar o barulho do cimento, da pazinha, fechando nossa comunicação com o mundo. O zumbido de mosquito finalmente pego.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 1/05/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1756

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