ENTREVISTA PARA REVISTA VEJA
O POETA DO TWITTER VOLTA À CRÔNICA
Adriana Caitano
Adriana Caitano
Um dos escritores mais atuantes nas mídias sociais, o poeta Fabrício Carpinejar tem mais de 34.000 seguidores no Twitter, onde dispara frases poéticas e outras que podem servir de ingrediente a prosas futuras. Algumas delas estão em Mulher Perdigueira (Bertrand Brasil, 336 páginas, 39 reais), livro de crônicas que o poeta lançou na quinta-feira, no Centro Cultural B_arco, em São Paulo (rua Dr. Vírgilio de Carvalho Pinto, 426). Antes do encontro com os leitores paulistanos, Carpinejar falou a VEJA Meus Livros.
Seus três livros de crônicas, O Amor Esquece de Começar, Canalha! e Mulher Perdigueira, formam uma sequência?
CARPINEJAR - Sim. A prosa ainda está encharcada de poesia, mas há diferenças entre os livros. Canalha! tem uma levada mais de humor, há uma combinação maior entre o lirismo e a graça que vai se especializando em Mulher Perdigueira. A história se sobrepõe ao efeito, ao capricho da palavra. O Amor Esquece de Começar é uma visão mais feminina do amor. Já Canalha! é sobre um novo homem, que não é mais uma caricatura, não é mais o Jece Valadão palitando os dentes. Ele tem outra postura, mais feminina. É um homem fruto de uma criação maternal.
Ser canalha não é ruim?
CARPINEJAR - Não exatamente. O canalha é um tipo raro. É diferente do cafajeste, que faz propaganda enganosa, mente pra conseguir o que quer. O canalha, não, ele desde o início confessa que não presta. Mas tem uma qualidade que é a coragem de amar e de falar a verdade. Você vai saber muito pouco da vida de um canalha, porque ele é invisível. É anônimo. A mulher que se apaixona por um canalha, na verdade, se apaixona por si mesma. É diferente do caso do cafajeste, que quer tomar todos os créditos.
Você também desconstrói o ciúme, e parece admirá-lo.
CARPINEJAR - Isso mesmo! Primeiro, porque ele vai explodir no momento certo. A pior coisa que existe hoje é as pessoas terem vergonha do ciúme. Ele é tratado como doença. Você não vai dizer para o namorado que está com ciúme. Vai tentar sonegá-lo, escondê-lo, e ele só vai crescer. Se a mulher confessa que tem ciúme, o homem diz “Você não confia em mim?”. Assim, ele coloca em risco o relacionamento e não permite que você sinta ciúme. E eu acho que o ciúme é indispensável. Porque é a pessoa ciumenta que vai se importar com você, vai ser leal, escutar o que você diz. A gente pensa nos efeitos colaterais do ciúme, no barraco, no escândalo, mas a gente esquece o lado positivo, a cumplicidade, a intimidade, a preocupação. Ele só se torna incontrolável quando sufocado.
Você parece admirar não só a mulher que tem ciúmes, mas a que demonstra o que sente.
CARPINEJAR -Isso. Uma mulher passional, intensa. Eu parto do princípio de que a doença é a indiferença. Hoje, a gente tem medo do terrorismo amoroso. Então, a gente faz de tudo para ser controlado, equilibrado. Os casais dificilmente confessam seus gostos, opiniões, preconceitos. Há uma impessoalidade atávica. Um deixa que o outro o imagine, porque assim será muito melhor do que realmente é. É uma mania de grandeza, a gente espera que o outro nos corrija, nos aperfeiçoe. E a gente não fala com medo de desagradar. Eu sou favorável a falar, a aceitar manias, a lidar com elas.
Sua namorada, Cínthya, fez o blog “Matando Carpinejar” e escreveu um texto dizendo que não era ciumenta e você exigia isso dela. É isso mesmo?
CARPINEJAR - Eu acredito que ela vai chegar à pós-graduação do ciúme (risos). Eu acredito que isso do relacionamento é tocante, isso do quanto ele pode ser jocoso. Todo mundo fala “Eu te mato” no relacionamento. Ela decidiu me matar na imaginação. Ela é ótima. Um Leonardo da Vinci: é médica, psicoterapeuta, blogueira, poeta, cronista, desenha, dá a melhor ré do mundo, é capaz de consertar chuveiro, torneira, pia. Eu já dei vexame trocando pneu na frente dela.
Vocês parecem opostos…
CARPINEJAR - Eu sou o que gosta de discutir o relacionamento, faço até resumo. Adoro conversar. Acordo elétrico, ela acorda lenta. Eu acordo com uma agência de notícias dentro de mim. Sou afetivo no abraço, perguntadeiro, indiscreto. Tenho uma aparência meio irreverente.
Como assim?
CARPINEJAR - Quando me descobri feio, vi que não tinha nada a perder. Ainda criança, já era famoso. As pessoas me apontavam na rua, chamavam de extra-terrestre. O feio é naturalmente famoso. Eu sofri bastante. Comecei a escrever para ser invisível. O que o feio mais quer é isso, é não aparecer. Eu me lembro uma vez, eu tinha nove anos, meus pais estavam tomando cafezinho na sala com o Mário Quintana, eu passei um creme francês da minha mãe que ardia muito no corpo todo e fui para a sala pelado. Passei por todo mundo e ninguém olhou para mim. Voltei para o quarto comemorando, achando que tinha conseguido ficar invisível. Mas eu teimei em repetir o teste, o meu pai me pegou pelo cabelo e me deixou de castigo. Até hoje, acredito que consegui ficar invisível da primeira vez (risos). Mas, com o tempo, aprendi a me reconhecer feio e isso me deu liberdade. Se sou feio, vou me inventar, vou escrever. Aí, comecei a rir de mim. Se sou uma piada, eu vou contar a piada. Não tive mais medo de ser patético, de ser ridículo.
Você aprendeu a lidar com a feiura de maneira bem-humorada?
CARPINEJAR - Sim, eu vi que gafes rendem as melhores histórias. Tanto que cheguei a ficar viciado em gafe, queria colecionar várias para contar. Enquanto meus irmãos colecionavam figurinhas, eu colecionava gafes. E, então, não ficava mais envergonhado com um tropeço. Eu fui me humanizando.
Você tem teorias originais sobre relacionamentos. Elas vêm de suas experiências ou de sua observação?
CARPINEJAR - As duas coisas. Não vou entregar se o que falo é o que vivi ou pensei (risos). Essa dúvida é própria do escritor, como se fosse um segredo. Será que ele viveu tudo aquilo ou ele imaginou tudo aquilo? Meus filhos, quando conto uma história, querem saber se é verdade. “Aconteceu mesmo?” A gente quer ter esse prazer duas vezes, o da invenção e o da realidade, e os dois ao mesmo tempo. Mas fui casado por 13 anos e essa experiência foi muito importante para mim.
Você defende a união estável?
CARPINEJAR - Acredito que seja deslumbrante a rotina. É deslumbrante você acordar no inverno e ter alguém ao lado. Não tem como um casal se separar no inverno, vão ficar com muito frio. Não há lençol térmico que dê o calor do corpo. Isso já é bíblico. Nossa, agora fiquei até santo (risos).
Em Mulher Perdigueira, há uma crônica poética sobre o ato de pendurar a roupa no varal. Cada um demonstra sua personalidade na hora de pendurar a roupa. Se eu pendurar a roupa, minha namorada vai dizer que está errado, minha mãe, também, porque cada um tem um jeito de fazer. Há um método, a solidão é um método. Você demonstra sua personalidade se tira a calça com o cinto ou se tira o cinto antes de tirar a roupa. Se você coloca por último o sutiã na hora de se vestir, por exemplo, confessa que gosta dos seus seios.
Você acredita que tenha uma alma feminina, uma sensibilidade maior?
CARPINEJAR - Enquanto eu tiver uma alma feminina e meu corpo continuar masculino, tudo bem (risos). Eu devo ter uma certa audição feminina, pelo fato de ter sido criado pela minha mãe e de ter uma irmã mais velha que é muito próxima – foi ela que me ensinou a dirigir, que fez a primeira festa, foi para ela que confessei meus primeiros namoros. Isso deve ter afetado tanto minha sensibilidade que eu esqueço as falas dos filmes e nunca termino um assunto. O homem é visual, capaz de transar com as coxas ou os seios de uma mulher, e não com ela. Mas a mulher vai reparar como você trata o garçom, as amigas. Isso não sedução, é entendimento. Ela não quer um homem, ela quer o homem em seu mundo.
É aquela história de a mulher ver o todo e o homem ser mais focado?
CARPINEJAR - É que a mulher é romancista, o homem é contista. Ela quer o enredo. Mulher Perdigueira trabalha o quanto a dependência pode ser prazerosa. É a mesma coisa que funciona com o escritor. A gente tem que distanciar as aparências. A crônica não é feita para ser um cabedal de impressões, é para contar uma história. Muito escritor reclama, diz que é dolorido escrever. Escrever é uma alegria, uma dança. Deveriam perguntar para o escritor o que dói mais: escrever ou não conseguir escrever.
Em você, o que dói mais?
CARPINEJAR - Não conseguir escrever! Quando eu não escrevo, aí, dói. Aí, eu acho aflitivo. Um escritor com crise de inspiração é muito infeliz.
Você já teve crise de inspiração? Lendo seu Twitter, tem-se a impressão de que as coisas saem de repente, com facilidade.
CARPINEJAR - Não, é do momento. Eu acredito nessa espontaneidade do chiste, do improviso, da bravata, coisa de gaúcho, tirar o tapete da conversa. Somos três irmãos, a gente se provocava muito no almoço. Se ganhava uma guerra pela irreverência, pela graça. Eu passei a vida inteira jantando numa tribuna. Cada um desafiava o outro com suas histórias. É muito natural isso, ou seja, se eu gosto de alguém, eu vou cutucar, provocar, tirar sarro. Se não gosto, fico na minha. Digamos que é um teste de resistência, saber o quanto o outro pode ser bem-humorado até na sua rabugice. Eu acho maravilhosa a rabugice. O pessimismo é inteligentíssimo, é um radar das contradições. Então, eu não acredito que falte inspiração porque não me enxergo em mim. Sou muito mais biográfico sendo os outros. Se eu quisesse contar minha vida não teria inspiração nenhuma. Minha vida é um atrito diante das outras vidas. Eu vivo recuperando o que é meu nos outros. E vivo devolvendo o que é dos outros que estava em mim. É esse jogo de comparações.
Publicado no site da Revista Veja
Seção Meus Livros, 24/06/2010