Blog do Carpinejar

ESTRELA-DO-MAR

Arte de Hannah Höch

Porto Alegre, 40°C. Patrão e patroa acompanhavam a novela das nove na sala, e só reclamavam do calor. Já estavam com aquela tosse alérgica. O ventilador fazia mais barulho do que vento. As janelas abertas apenas carregavam mosquitos. Eles não se concentravam no som das imagens por absoluta apatia. As pálpebras tremiam de cansaço. O véio aproveitou o comercial e pediu licença para sua véia.

– Vou dar um pulo na garagem e já volto.

– Tudo bem, meu véio, não demora, que é tarde.

Quarenta minutos, e nada do véio voltar.

A véia pensou duas vezes antes de levantar da cadeira. A velhice é minimizar os esforços: quando se senta, não se levanta por qualquer coisa.

Mas a preocupação tomou conta, estava virando aflição, terço, coceira de aliança.

O que será que aconteceu? Desceu a pequena escada até a garagem.

Encontrou o véio misteriosamente trancado no carro. Coisa esquisita. Será que foi se matar? Ela se lançou a abrir a porta, com a respiração ofegante.

Então, de olhos fechados, o véio levou um tremendo susto, como que pego em flagrante.

– O que está fazendo aí dentro?

– Não aguentei o calor, e vim descansar com o ar-condicionado.

O véio tinha aquele rosto culpado de cachorro que comeu o osso alheio. Tanto que se encolheu para dar a resposta.

A véia avermelhou as bochechas. Aquela mulher era muito temperamental. Geniosa. Indomável.

Mas em vez de xingá-lo, disse com toda a ternura:

– Mas por que você não me chamou?

Diante do encolhimento de ombros do marido, ela sumiu por instantes e voltou arrastando um edredon e travesseiros.

Entrou ao lado do véio, deitou na cadeira e falou:

– Pode dirigir meus sonhos. Será nossa segunda viagem de lua de mel, nosso segredo.

Passaram a madrugada sob a refrigeração do veículo. Esqueceram a previsão do tempo. Esqueceram o inferno. Esqueceram o terror da insônia. Esqueceram os pijamas empapados de suor. Esqueceram a sede. Esqueceram as lamúrias.

Esticados, cada um em sua poltrona, roncaram com surpreendente tranquilidade.

Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar. As pontas dos dedos se tocaram amorosamente ao longo da noite. Não dormiram de conchinha, mas de estrela-do-mar.

PS: Isso é uma peça de ficção para retratar o calor em Porto Alegre. Não vá fazer o mesmo, é perigoso carro ligado em garagem fechada.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 18/2/2014
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17708

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