EU JÁ SABIA
Arte de Wilfredo Lam
Teremos sempre gente nos julgando.
Os vizinhos, os parentes, os colegas de trabalho, da academia e do inglês, quem nos tirou no amigo-secreto, quem nos viu no cinema.
Chamados para opinar, vão demonstrar uma intimidade surpreendente.
Não é paranoia, todos só estão esperando que eu faça algo realmente grande para confessar que me conheciam.
E pode ser agradável e pode ser nocivo, não importa, as maçãs podres partilham a cesta com as frutas sadias, o joio e o trigo são irmãos gêmeos, a maldade e a bondade são mais parecidas entre si do que o amor e a amizade.
Diante de uma atitude boa, dirão que já sabiam que eu era sinônimo de retidão.
Diante de um fato ruim, também dirão que já sabiam que eu não prestava.
O sonho da maioria é desfraldar a faixa: “Eu já sabia, Galvão”.
O fofoqueiro deseja ser profeta, pretende dar a notícia em primeira mão seja lá qual for e como for.
Os conhecidos guardam meus antecedentes negativos e positivos numa pastinha na área de trabalho do Windows, prontos para a impressão.
Ao me tornar santo, não será complicado encontrar testemunhas dos meus milagres. Citarão coisas inacreditáveis. Quando pulei o muro de três metros da Escola Imperatriz Leopoldina aos 11 anos e fui suspenso, avisarão que nada me aconteceu porque meu corpo é protegido pelo Nosso Senhor Jesus e que a direção me castigava injustamente e não compreendia meu dom.
Ao me tornar louco, comentarão que o mesmo pulo já dava provas da possessão do demônio, que meu apelido Chuck indicava a liderança negativa na turma, que merecia expulsão da diretora.
De um lado da moeda, a santidade. De outro, a ausência de sanidade. Em ambos, a mesma efígie.
Somos influenciáveis. Há a ânsia em definir o próximo para nos poupar da encrenca de assumir as próprias ambiguidades.
Em caso de me converter num herói salvando criança de atropelamento, a opinião pública tecerá elogios de minha conduta familiar. Lembrará do amor incondicional aos filhos.
Na hipótese de atropelar alguém, o público me enxergará como uma máquina mortífera desde a infância. Desde quando andava de triciclo e amassava formigas. Puxarão os pontos da carteira de habilitação, e o zelador do meu prédio, Carlos, descreverá minhas dificuldades para tirar o carro de ré.
Teremos sempre gente nos condenando. Viver é uma execução sumária.
Certo que, um dia, termino no paredão.
Pelo menos, vou pintando os muros de meu fim. Verdes de esperança.
Mas não faltará amigo supondo que isso é ironia.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 31/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16964