Blog do Carpinejar

EU LÍRICO

Arte de Eduardo Nasi
 
Sou filho de dois poetas.

Os enfrentamentos domésticos traduziam Bucólicas, Geórgicas, Éclogas.

Os pais gastavam o dicionário em ironia e sarcasmo. Palavras velhas, aforismos, citações serviam para cutucar o outro na mesa durante o almoço.

Não usavam palavrões, entretanto se ofendiam igual, com raiva e espuma.

Trocavam o baixo calão pelos arcaísmos.

Nós, os quatro filhos, dedicávamos a decifrar as indiretas. Mas os pais, escolados e chiques, não admitiam discutir.

— Estamos apenas debatendo — avisava o pai.

Sim, fingíamos acreditar, desde quando o divórcio era Curso de Literatura?

O “eu lírico” predominava como principal recurso para disfarçar o atrito.

— Não é briga de verdade, nossos eus líricos divergiram.

— Eu lírico, pai?

— O eu lírico é a voz do poema, não significa a voz do escritor. É um sentimento que vem do texto, e que não foi vivido necessariamente pelo autor. É um “eu” poético que se diferencia do “eu” real.

Aquilo nos irritava duplamente: pelo moralismo e pela mentira.

No fundo, o eu lírico é uma esquizofrenia de gente culta, só isso.

Toda conversa que cheirava mal vinha com a desculpa do “eu lírico”.  Uma espécie de “brincadeirinha”.

Ninguém assumia a responsabilidade das suas teorias. O pai escapava do peso das afirmações, a mãe escamoteava da gravidade das acusações.

Dois adultos livres do julgamento e de veneno irrefreável.

Foi neste tempo, tinha oito anos, que acho que comecei a me masturbar.

Já me preocupava muito mais em saciar o corpo do que acalmar a loucura do matrimônio deles.

Pena que não havia privacidade sexual numa residência de um único banheiro.

Precisava escolher o momento mais pacato e sem concorrência para me tocar. Costumava ser 15h, depois do congestionamento do almoço. Até para se masturbar tinha que marcar hora, e reservar sala.

Numa tarde pacífica, municiado de Playboys antigas, eu batia punheta com calma quando a mãe forçou a porta e a tranca automática cedeu.

Ela me pegou em flagrante. Em vez de olhar e desaparecer, abriu a porta e congelou seu rosto em mim. Fixou seus olhos na minha pose de banquinho.

Ainda perguntou à queima-roupa:

— Filho, o que está fazendo?

Diante do óbvio, me restou responder:

— Nada, mãe, é o meu eu lírico.
 





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

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