EU SOU VOCÊ
Arte de Wayne Thiebaud
Você não aguenta reprisar o corredor dos perfumes do mercado. “Vamos?”, o marido não se mexe, demora todas as vidas de Chico Xavier para escolher um produto. Investiga preço, lê os componentes, pega dois xampus e três condicionadores para testar qual é melhor.
- Tem certeza que você precisa de tudo isso? - você pergunta.
Ele despreza sua curiosidade e liga para o amigo disposto a confirmar a dica. Recapitula, pelo telefone, os ingredientes das costas da embalagem: glicerina, geramol...
* * *
Você está com a mão na maçaneta aguardando sair e não suporta a sensação de arbusto de hospital. “Vamos?”, mas o marido demora para pentear os cabelos. Acabou de testar os xampus e os condicionadores e depende de uma opinião sincera do espelho.
- Arrumado assim só para almoçar? - você pergunta.
* * *
Você assiste seu seriado predileto no sábado e seu marido inventou de arrumar o apartamento. Além de lavar a louça e desinfetar os banheiros, ele liga o aspirador de pó.
O aspirador de pó é o único herdeiro do cortador de grama. Pelo barulho infernal logo cedo, descobre que seu companheiro é pior do que a própria mãe. Quando começa uma faxina, põe a família a se sentir culpada.
- Tinha que ligar o aspirador justo agora que estou vendo “House?” - você pergunta.
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Você é carregada pelo marido. Hipnotizado pelas vitrines, ele nem nota que puxa sua mão com força. Entra na quinta loja para espiar a promoção de sapatos. Não suporta mais caminhar, nem é pelo salto que nunca usa, é que sonhava sestear no sofá e terminar o “House” interrompido pelo aspirador de pó. Enxerga, ao fundo da loja um banquinho alto. Senta e respira aliviada: o banquinho é bebedouro no deserto dos consumistas.
Ele recebe cinco caixas da vendedora e experimenta os pares com meticulosidade cênica. Dobra o pé imitando uma bailarina na barra.
- Gostou?
Você somente pensa em dizer:
- Vamos embora desse shopping?
Engole a seco as palavras para não ser cobrada pela indisposição.
* * *
Você marcou uma partida de vôlei com as amigas, volta para casa de madrugada depois de uma carne e rodadas de chope. Seu marido questiona o motivo da demora. Você não fez nada de errado, mas não está a fim de dar satisfação, toma banho e vai dormir.
* * *
No café da manhã, ele lhe espera com o rosto murcho, de pão do dia anterior. Já entendeu o recado: ele quer discutir o relacionamento pela enésima vez na semana, quer corrigir alguma coisa de sua atitude.
- Porra! - desabafa. - Casamento não é aula de caligrafia.
- Para de gritar comigo!
Não tem escolha, é conversar ou o fim, seu marido confessa que não vem sendo valorizado, que permanece sozinho a maior parte do tempo, que você não elogia a janta que ele prepara, que precisa oferecer um mínimo de atenção aos filhos, que ainda não reservaram uma noite para assistir a caixa de filmes da Julia Roberts. Ele chora, você tenta consolar e não consegue, o sujeito sai correndo de chinelo com meia e bate a porta do quarto:
- Me deixa em paz!
* * *
Você atende ao pedido e segue ao escritório. Mal entra em sua sala, toca o celular e seu marido começa outra discussão reclamando de sua frieza, por tê-lo abandonado aos prantos. Ele mia inconveniências de seu comportamento enquanto finge que escuta e gesticula aos colegas as atividades que devem ser feitas.
* * *
Não sei o que passou pela cabeça da mulher quando desejou mudar o homem.
Publicado no jornal O Globo
Revista O Globo, P. 35
Crônica especial sobre Borralheiro, personagem de meu novo livro
Colunista convidado
Rio de Janeiro (RJ), 17/4/11