EU USO UMA ROUPA DE MINHA MÃE TODO DIA
Não tenho vergonha de confessar que herdei uma roupa de minha mãe. Eu uso uma roupa de minha mãe praticamente todo dia. Mantenho sadiamente o meu lado Norman Bates, de Psicose.É o avental da cozinha. A minha saia. Sempre que vou preparar comida, amarro o manto materno na minha cintura. Era a mesma peça que a minha mãe empregava em minha infância, que furtei sem pudor de sua gaveta.
Não sei se sou eu que cozinho ou é o espírito de minha mãe que baixou em mim. Mas eu me sinto lindo de branco, misturando ervas e temperos, limpando as mãos em suas bainhas pela pressa.
Acho que só me descobri na gastronomia para poder vestir o avental. Não há maior felicidade do que fazer os outros felizes pela comida. O trabalho invisível e custoso de preparo nada é perto de ver a família gemendo à mesa e me elogiando com onomatopeias.
Coloco a proteção menos pelo medo de sujar a camisa por baixo e mais pela magia de me preparar mentalmente para uma tarefa.
E o avental da mãe é um dicionário. Ela é poeta. Como não tinha intervalo para anotar no papel as ideias que surgiam durante o vaivém das panelas, ela escrevia palavras e senhas de seus pensamentos no pano. O avental é inteiramente rabiscado. O avental era o seu rascunho para não atrasar o almoço.
O avental era a sua escrivaninha de pé.
Os escritos estão invertidos de cima para baixo. A letra de minha mãe atravessa o tecido como um bordado infinito. Vejo frases estranhas por ali, como "a saudade voa baixo" ou "o amor é a amizade do corpo".
Ela nunca me disse: não me incomoda, que estou ocupada. Nunca me mandou embora para não atrapalhar o ritmo de seus horários. Jamais me amaldiçoou por estar nos cuidando, por aquilo que não pôde realizar em sua vida. Incluía-me em seu excesso de afazeres.
Quando cozinho, eu leio a minha mãe, eu sou a minha mãe, eu agradeço à minha mãe por me dar o seu raro tempo de escrever também para nos amar.
Quantos versos dela eu mastiguei no meio da comida? Talvez seja o seu ingrediente secreto que tornava tudo tão saboroso.
Publicado em Jornal Zero Hora em 22/5/2018