Blog do Carpinejar

EXCESSO DE DOM

“Você diz não saber o que houve de errado e meu erro foi crer/ que estar ao seu lado, bastaria/ Ah meu Deus, era tudo que eu queria/eu dizia seu nome, não me abandone jamais”
Os Paralamas do Sucesso


Arte de Tim Burton, o preferido dela.



Meu apelido de pequeno era patinho feio. Estudei numa escolinha com esse nome, chorei quando minha mãe me leu o livro, considerava uma tragédia o animal se transformar em cisne – era perder sua essência.

Desde aquela noite, não confio no final feliz da história de amor. A maioria não tem nem final.

Até porque ninguém acredita que terminou. Continua a se viver ou por um milagre, na expectativa que um dos dois quebre o pacto educado do silêncio, ou por hábito, o que nos empurra para frente são o trabalho, as necessidades dos filhos, o amparo curativo dos amigos.

Meu romance com Cínthya foi terrivelmente bonito. Tão bonito que não existe rascunho.

Eu e ela tentaremos narrar, surgirão fragmentos desconexos, vamos nos emocionar e lembraremos agora da raiva. A raiva de não estarmos mais juntos. Uma raiva sem culpados, mas com dois mortos.

E um morto não pode enterrar o outro. Não sei quanto tempo ficaremos ao relento. O mar talvez nos puxe por compaixão.


Por favor, não me pergunte nada dela hoje. Não pergunte nada de mim para ela hoje. Reinará o ódio. Por trás dele, de todas as brigas e rumores, dos temperamentos incompatíveis, sobrevive uma ternura incontrolável, um amor genuíno e violento.

Eu direi absurdos de seu comportamento, para aceitar que tomei a atitude adequada. Ela repetirá crueldades do meu posicionamento para se tranqüilizar. Terei meus motivos e ela, seus motivos, e nunca aceitaremos que as explicações não dão conta do mistério. Somos muito menores do que aquilo que vivemos juntos.

A incompreensão será o nosso complexo de inferioridade.

Formamos um enigma. Não é possível fazer resumo de impressões, o raciocínio se esvai nas primeiras estocadas: por que nos encontramos? Por que tentamos nos entender? Por que trocamos sacolas de pertences na despedida se não nos pertencemos mais?

O pé de pato é o sapato de Cinderela. Que engraçado lembrar só de contos de fadas.

Ela surfava com um par todo colorido, vermelho e amarelo, mas perdeu o pé esquerdo em Tramandaí (RS). Três anos depois, ainda um completo desconhecido dela, eu achei a peça extraviada em Imbé, na praia vizinha.

Guardei o objeto por teimosia, assaltado pelo vexame da concha sobrenatural e inútil. Qualquer um largaria na margem para que seu dono o localizasse. Carreguei para a casa, envolvido na completa dificuldade de me livrar do que é sozinho.

Quando a conheci e visitei seu apartamento, observei na varanda o pedal de peixe parado, ilhado, solteiro, duvidei que pudesse ser verdade, que fosse possível. Aleguei coincidência, gozação, até que o número 38 me convenceu a desistir de perguntar.

Eufóricos, arriscamos andar com pés de pato pela areia, pelo gramado, pelas ruas. Não nos acalmava a informação de que eles funcionavam apenas na água. Considerávamos um desperdício diante da grandeza da predestinação. Para nós, não havia diferença entre o raso e o profundo, tudo era mergulho. Tudo sempre foi mergulho. Um excesso de dom.

Não confio em final, mas não contesto o começo. Sou realmente seu par, que não virou cisne.

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