EXTRAVAGÂNCIAS COBERTAS DE SENTIDO
Arte: Eduardo Nasi
Meu pai passou quarenta dias fora durante a minha infância. Cumpriu uma rigorosa turnê literária em várias cidades de Portugal e da Espanha. Eu tinha oito anos e sentava com os pés para dentro das grades da janela para esperá-lo.
Todos nós, crianças, ansiávamos com o que ele traria de presentes. Antevíamos uma sacola de brinquedos esquisitos, uma provisão direta das mãos de Willy Wonka, da Fantástica Fábrica de Chocolates.
Passava dias seguidos confabulando com os meus três irmãos o que receberíamos: uma bola de futebol do Real Madrid ou do Barcelona, um carrinho de corrida, chicletes gigantescos? Carimbávamos o passaporte da imaginação com achismos e nunca cansávamos de repetir os exercícios de adivinhação.
Qual a nossa surpresa quando o pai aparece no portão da residência, equilibrando duas malas e uma melancia. Uma melancia? Aquilo me impactou profundamente. É uma fruta que poderia comprar em qualquer supermercado. Por que diabos ele carregava uma melancia em sua bagagem do exterior?
A mãe sempre se desculpava pelo pai, explicando a sua condição distraída de poeta, mas essa extravagância superava as nossas expectativas. A cabeça nas nuvens já atravessava a gravidade da Terra.
De lembrancinhas, distribuiu apenas réplicas de touro em azulejo, uma relíquia deveras adulta para soltar algum “oh obrigado!”. Não disfarçamos o descontentamento, sequer agradecemos, completamos o rebanho customizado desmontando as valises de alimentação da companhia aérea Varig.
Mas e a melancia? Nunca entendi. Eu jurava que havia inventado a bizarrice. Conferi com a memória paterna e realmente aconteceu. Perguntei o motivo dele voltar da Europa com a incômoda bola de basquete entre os braços.
– Ah, filho. É verdade. Não vim de lá com a melancia. Comprei no caminho. Eu não suportava mais a vida de hotel, de frigobar, a geladeira pequeninha onde não cabe nada, nem os próprios pensamentos, muito menos a saudade de vocês. A melancia simbolizava que estava de volta à casa. É um teste de espaço – só uma geladeira de verdade para comportá-la.
O pai vinha a ser um faraó disfarçado de escritor. No interior das tumbas dos reis egípcios, havia melancias de oferenda para que pudessem comer depois da morte.
No caso, a nossa tumba era geladeira. E toda viagem vencida correspondia a uma ressurreição.
Publicado em Vida Breve em 29/03/17