FALSO DESTRO
Arte de Eduardo Nasi
Minha letra é feia, desastrada, um garrancho de médico.
Emendada já era uma árvore em chamas, separada é um floresta extinta.
Só serve para criar assinatura, não para ser legível.
As professoras não corrigiam minhas provas, traduziam as provas para depois corrigir.
Até meus números são esquisitos. Cumpro a façanha de criar confusão entre o 9, o 3 e o 4 ou entre o 1 e o 2. Gero trotes quando passo telefones, produzo ligações erradas. Nenhum familiar pede mais para que anote qualquer coisa — é desperdício de tempo.
Enfrentei tantas frustrações ao longo da vida que alimento a ilusão de retornar ao primeiro dia de aula daquele fim de fevereiro de 1979, onde a professora da escola nos mostrou que escreveríamos com a mão direita, a mão certa para aprender a empunhar o lápis.
Houve uma explicação de como usar o lápis e éramos condicionados a repetir o desenho das letras que estava no quadro negro.
Eu peguei o lápis com a mão esquerda, minha mão boa, minha mão de maior força, e não sofri nenhuma complicação para imitar o alfabeto.
Foi fácil, tranquilo, fluente. Esgotei a tarefa em poucos minutos, o cheiro do álcool do mimeógrafo nem havia evaporado. O lápis se comportava como um sexto dedo.
A “sora” se aproximou de minha classe, levantou a folha, parabenizou o contorno, mas emitiu a sentença que mudaria a minha vida:
— Muito bom, mas agora faz com a mão correta: a direita. Não é para escrever com a esquerda. Se escrever com a esquerda, fica em castigo.
E lembro que ela piscou o olho esquerdo. O maldito olho esquerdo. A piscadela de sua pálpebra me transtornou mais do que a reprimenda. Por que, então, ela não piscava com o direito?
Já tive vários pesadelos com ela piscando o solitário olho para mim.
Foi uma iniciação no cinismo na infância. Ameaçava fazendo charme. Uma situação ambígua: severidade e doçura, rigor e sedução. Não contava com a certeza se iria mesmo me penalizar ou se estava cumprindo seu papel de educadora.
A questão é que não me permitiu escrever com a canhota, eu que nasci para ser canhoto: jogo sinuca com a mão esquerda, ergo os objetos com a mão esquerda, me defendo com a mão esquerda, acaricio com a mão esquerda.
Não desfrutei da liberdade de escolher o braço da minha escrita.
Forçado a ser um outro. Um estranho de tinta e mancha. É como perder sua sombra logo cedo. A palavra é nossa sombra.
Apanhava demais das linhas para manter a motricidade mínima do lado destro. Não passeava, mas marchava. Não deslizava, mas caía. O último a realizar as tarefas. O retardatário. O que restava sozinho na classe após o sinal.
Como seria minha caligrafia se escrevesse com a esquerda?, flagro-me sonhando na aula ao receber os cadernos de meus alunos.
Linda, compreensível, arredondada?
É uma ilusão supor que salvaria o traçado da minha angústia.
Minha letra seria muito mais feia. O domínio piora a letra.
Como teria destreza e firmeza, aumentaria minha pressa, minha ânsia de acabar logo com a frase.
A ansiedade está no sangue.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
04/02/2015