FEIURA RECOMPENSADA
Disputa realizada anualmente no município da região norte do Rio Grande do Sul consagra musos às avessas, como o pedreiro Carlos Kroth, 66 anos, atual bicampeão. Foto deRicardo Chaves
A feiura é um dom. Assim enxergam os 9 mil moradores de Alpestre, cidade a 430 quilômetros da capital gaúcha, o ponto mais setentrional do Rio Grande do Sul, divisa fluvial com Santa Catarina. Lá no fim do Estado, na ponta oposta de Chuí, ocorre o badalado concurso “O Alemão Mais Feio”. É o avesso do Mister Mundo. A figura masculina mais desleixada e estranha ganha o prestígio de muso do município.
A disputa atrai um público empolgado de 1,5 mil pessoas e cerca de oito candidatos horripilantes. Os aplausos decidem a série de mata-mata.
– Ser feio não é para qualquer um – avisa o atual bicampeão Carlos Kroth.
Criado em 2003 a partir de uma brincadeira, o campeonato hoje é tratado com seriedade profissional pelos concorrentes, que se preparam para a decisão na Oktoberfest (em outubro). Nenhum patinho feio pretende virar cisne; pelo contrário, a intenção é se transformar num marreco. Eles realmente se estragam ao longo do ano para fazer a diferença e arrebatar o galardão: comem e bebem sem censura e descuidam da aparência de propósito. Nem tanto pelo prêmio simbólico concedido aos primeiros colocados (R$ 100 ao 1º e R$ 50 ao 2º), e sim pelo status. O vencedor é consagrado como herói local, a ponto de ser procurado para dar autógrafos e tirar fotos com as crianças.
– Quem perde se zanga e diz que foi roubado – avalia Claudir José Boniatti, presidente da comissão organizadora.
Há fofocas, chantagens, treinos fechados que aquecem o interesse da comunidade.
O agricultor Silvio Zimmer, 71 anos, concorre desde 2004 e o máximo que alcançou foi um vice-campeonato.
– É boca braba vencer; os outros homens não são feios, são horríveis – zomba.
Mas ele não desiste. Seu plano é completar oito dias longe do banho, para desespero de sua mulher, Maria:
– A fórmula de sucesso é virar bicho.
Entre seus truques, destacam-se o golpe chapado (tirar a chapa de repente) e a queixada (colocar o queixo avantajado para frente), além da numerosa torcida organizada que leva de casa (seis filhos e 11 netos). Na dura campanha eleitoral, Sílvio não descarta promessas assistencialistas:
– Se botar a mão na taça, pago rodada de cerveja.
O que atrapalha o desempenho é sua simpatia. Por mais que se esforce na careta, não consegue assustar, transpira doçura própria de avô. Maria, sua companheira de 51 anos, reza em segredo pela sua derrota:
– Finjo que torço, mas fico aliviada quando é desclassificado. Ele é lindo por dentro, conquistou o torneio mais complicado que existe: o coração de uma mulher.
Já Avelino Hendges, 71 anos, está desiludido com o fim do reinado. Era invencível até a chegada de Carlos Kroth. Acumulou os títulos de 2007 e 2008 e os vices de 2009 e 2010. Agora, busca recuperar a hegemonia e a inédita marca de tricampeão:
– Vejo os dois últimos embates como zebras, eu sou mais monstro do que ele.
Seus pontos fortes são a barriga proeminente com a camisa dois números abaixo e a perna esquerda mais curta, provocando o que chama de “compaixão do manco”. Também comparece sujo do trabalho na lavoura: para o cheiro tontear os adversários. O trago também é indispensável, distribuído no vinho de manhã, no conhaque de tarde e no chope de noite.
O atual cinturão de Alpestre, o pedreiro Carlos Kroth, 66 anos, tem a extravagante teoria de que se enfeia 6% ao ano. É uma espécie de inflação de rugas, estrias e flacidez. Sua preparação física é intensa: fuma duas carteiras de cigarro por dia, corta a barba pela metade, despreza o pente, come mal e dorme pouco.
– Sou pobre, sou feio, mas sou. Posso ser alguma coisa – filosofa.
Quando está sério, não mete medo. O que vem garantindo a larga vantagem nos confrontos são a gargalhada assustadora de bruxo e a barreira do riso de apenas três dentes. Se fosse levada em conta a conversa, não seria eleito. É um romântico incorrigível, com pôster de Leandro e Leonardo na cozinha. Kroth atravessa, na verdade, uma longa dor-de-cotovelo:
– Não sou amado para me amar.
Nunca se recuperou do divórcio com Cenilda, há 18 anos. Ela permaneceu em São Carlos (SC) com os dois filhos, e ele tomou a estrada para esquecê-la.
– Ainda a quero como no primeiro dia. Poderia cozinhar para ela, passar a roupa.
Solteiro, cultiva o abandono. O distanciamento da família desanimou sua saúde:
– Se tivesse uma mulher, seria bonito, iria me arrumar e me encher de loção.
Não há vitorioso que não tenha um ponto fraco.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 31, 26/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16623
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