FICHA LIMPA
Mafioso tem ética, bandido tem ética, não há como fugir do código de conduta na intimidade.
Divido o homem em duas linhagens: os que respeitam nossa mulher e os que desprezam os laços.
Os primeiros estão destinados a perdurar a vida inteira, os segundos são salafrários, capazes de vender a mãe e a irmã numa única tacada. Nem o inferno aceita: produto intelectual de segunda.
Amigo é que nem ressaca; só saberemos se a conversa é original no dia seguinte. Amigo que é amigo não vai soltar cantada nenhuma na sua frente, sequer elogiar em excesso sua companhia. Não fará piadas de duplo sentido. Só mencionará o conjunto da obra. Qualquer coisa é o casal pra cá, o casal pra lá. Será educado, contido, elegante. Guardará qualquer comentário indiscreto para as cinzas.
Porque é fácil jogar contra o próprio time. Afinal, ele conhece seus defeitos, falhas e fraquezas como ninguém.
Bem intencionado, não irá criar indisposição e intriga, muito menos tentará ser mais amigo dela do que de você. Cuidado com quem troca de lado na confidência.
É questão de probidade amorosa. Não empregar o desabafo dos parceiros a seu favor. Jamais receber benefícios dos segredos.
Aprendi o mandamento, aos onze anos, na Escola Imperatriz Leopoldina, quando falei para Rodrigo que estava a fim de Rita e ele roubou as poesias de meu caderno para conquistá-la. Namoraram por plágio.
Nunca me envolvi com mulher de amigo. Pode ser ex, flerte, casinho, amante. Assim que se aproximou de um camarada, a atração morreu. Namorada de amigo meu não é homem, eu é que deixo de ser. Sou castrato, sou transexual, uso saia, mas ela está cortada definitivamente da lista, do futuro, da libido. Armo exercícios imbatíveis de prevenção, fantasio a figura graciosa de buço, com o sovaco peludo, sem o dente da frente. Sempre surte efeito, não corro risco. Não será o trago e a carência que me farão mudar de ideia. Mesmo que a menina se esfregue em mim, seminua ou vestida de tenista. Mesmo que deite de quatro numa mesa de sinuca, como na capa de Playboy de minha infância. Rebato os ataques com a astúcia de Santo Antão. Não cometo esse pecado, tão hediondo quanto incesto; toda tentação exige o mínimo de moralidade.
Quando se quebra a palavra não existe modo de recuperar o caráter. Igual a cavalo: depois de uma fratura, não corre mais. Nem adianta alegar que “aconteceu” ou que não teve como controlar (desculpa ainda mais calhorda, ao transferir a culpa e se isentar do ato).
Por isso, até hoje, tenho tão poucos amigos.
Crônica publicada no site Vida Breve