Blog do Carpinejar

FILHA?

Arte de Lauren Hamilton

O casal é uma gangorra. Um dos dois precisa estar acabado para que o outro possa rejuvenescer.

É a minha vez. Bem que minha namorada tentou tirar o ranço de mais velho. A nostalgia é como uma gripe mal-curada. Qualquer resfriado e retorna o desânimo inicial.

Foi justo quando parei de dizer "no meu tempo", "na minha geração", "não somos da mesma época". Recuperava minha juventude ou disfarçava o peso com a irreverência. Controlava os impulsos saudosistas e as referências aos filmes, seriados e desenhos da década de 70. Mas fracassei. Venho me sentindo mais feio do que na minha infância e mais esquisito do que na minha adolescência, o que não é difícil conhecendo meu biotipo. Não é depressão; depressão pode ser tratada.

Entrei num período em que não me sinto admirado, confiante, independente. Experimento o vácuo de personalidade. Qualquer palavra é áspera, qualquer amor não é suficiente. O mundo inteiro passa ocasionalmente por isso, quem se aproxima dos quarenta passa todo dia. O primeiro choque foi na bilheteria do cinema. Uma espectadora me afofou como se fosse de brinquedo, parecia um garoto de programa. Faltou somente enfiar notas em minhas cuecas.

- Nas entrevistas na tevê, você é mais feio e mais gordo. Assim parece menos horrível.

Era na entrada do filme, desfrutaria de duas horas para apagar os resquícios do ataque. Comi um saco gigante de pipoca mais pela ansiedade do que pela vontade.

O drama eclodiu no primeiro andar do mesmo shopping. Circulava pelo supermercado com o Vicente, curtindo sua euforia de se antecipar à lista da compra e buscar itens nas prateleiras mais distantes. Uma leitora se esgueirou nas frestas dos refrigerantes e me fez cara de “achei!”; os traços sorridentes de coruja acordando a árvore:

- É o escritor?
- Sim, sou.
- Ah, é seu filho?
- Sim, é.
- Eu só lhe vejo com sua filha. Não o conhecia.
- Não deve ser, minha filha mora em Brasília.
- A gente sempre comenta como o amor de vocês é bonito. Vivem se abraçando, coisa que não é natural entre pai e filha.
- Não é minha filha, está errada.
- Claro que sim, tem cabelos negros, um pouco mais baixa do que você, gosta de vestidos.

No instante em que você é reconhecido como pai da namorada, dispense qualquer preocupação estética. Terminaram as pretensões. Pode usar suspensório, beber cerveja de roldão, sair de casa com polainas. Não há como piorar a aparência. Não se preocupe mais com a cintura. Aceite a velhice, a barba branca, a ausência de comunicação com os jovens. Morreu, agora é escolher entre ser enterrado ou cremado.

Tenho uma diferença de oito anos com a Cínthya (29), a senhora cumpriu o prodígio de dobrar a idade. Para ser pai dela, mesmo forçando a barra, necessitava da distância de 16 anos. Ou seja, ela calculou que minha idade girava em torno dos 45/50. Engatinho na crise dos 40, ela me convoca para pular etapas.

Já sofria em silêncio ao ser confundido como o primogênito de casa, sendo que sou o terceiro dos quatro. Aturava quando pediam minha carteira de identidade para comprovar a data do nascimento.

Ela não me questionou, concluiu. Diante de sua convicção, eu me enxerguei em desvantagem com o próprio passado.

É demais. Logo serei preso por pedofilia.

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