FILHO DA PECHINCHA
Arte de Cínthya Verri
Eu não durmo no avião. Cochilo com olho aberto e outro tremendo. Os cílios são cadarços desamarrados.
Estou em vigília pelo lanchinho. Mesmo que seja somente um copo de água ou um refrigerante. Mesmo que seja bolacha de sal e tablete de manteiga. Mereço, e não abro mão. Paguei, e quero cada fone de ouvido, cada torrão de açúcar que seja oferecido.
— Se bem que o mendigo em minha infância era melhor tratado do que passageiro de companhia aérea de hoje —
A questão é que não adormeço para não sacrificar benefícios. Sou pão-duro. É oferecer de graça que aceito. Eu me vejo roubado se os comissários pulam a minha fileira.
Não admito perder algo que os demais estão desfrutando. Meu sobrenome é Promoção.
Entro em filas homéricas por brindes de companhias telefônicas, preencho cupons para sorteio de bicicletas em lojas de roupas. Sucumbo à oferta de ganhar uma bolsa na compra de duas malas, ainda que eu não tenha necessidade. Não penso duas vezes. A vantagem me paralisa. Sou subornável por chaveiros.
Deveria ser o menino birrento que chorava no mercado porque a mãe negou a pasta de dente com tampa de Pateta ou a revista de quadrinhos com relógio de plástico. Eu me vejo sendo arrastado pela gola da camisa para a porta.
Nunca comprei produtos pela qualidade, mas pelos adicionais. Não preciso comentar que meu chocolate predileto na Páscoa era o Kinder Ovo. Montava o brinquedinho e guardava o chocolate em potes de vidro.
Dois num, três num, pacote de seis pelo preço de quatro são cotonetes para os meus ouvidos.
Já recolhi escrivaninha no lixo do prédio. Resgato o móvel apesar da ausência de um lugarzinho em casa. Nasci com alma de brechó, fama de sucata, mania de ferro-velho. Adoto quinquilharias e depois raciocino o que posso fazer com elas.
Vivo seduzido por aquilo que é de graça. Temo ser desfavorecido, o último a ganhar, a vítima do momento, e não desmonto a tropa de guarda.
Quando criança, um colega me ofereceu naftalina como se fosse bala de coco. A esfera era apetitosa, sedutora, linda. Brilhou a pele do rosto tal pequeno globo de discoteca. Aceitei o mimo e agradeci com um riso desdentado da terceira série.
Na hora em que fui comer, ela caiu no chão. Deslizou de minhas mãos. Tentei soprar, mas estava muito suja, cheia de poeira.
Tive que colocar fora.
Posso ser burro, mas não sou porco.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira