FOBIA DAS FOBIAS
Arte de Osvalter
O ansioso tem direito a três fobias. Mais do que isso, é ambição e vira doença.
Eu mesmo é que determinei a medida para não depender de especialistas. Sofro por antecipação, o que me põe a ensaiar a cena para diminuir o sofrimento. Só que organizo eventos para os atos mais minúsculos, dobrando o martírio no fim das contas. Ao invés de sofrer na hora, sofro um dia inteiro pensando na hora que vou sofrer. O incômodo passageiro é um desconforto permanente. Banalidades do cotidiano geram desproporcional tremedeira. No intuito de preveni-las, eu me canso em hipóteses pessimistas, desculpas furadas e boicotes.
Carrego uma postura catastrófica. Sou dramático nas amenidades, sóbrio nas tragédias. Sinto o pânico no lugar errado e no momento errado. Serei tranquilo num deslizamento, numa enchente, num incêndio. Mas perderei a lisura ao não encontrar um livro em minha biblioteca. O fóbico não é o que usa uma lupa para ampliar o tamanho das coisas, mas fixa a lente com tamanha insistência que acaba queimando o que vê com o reflexo do sol.
Meus medos são modestos. Exótico é o Roberto Carlos, que somente executa curvas à direita ao volante (chegará sempre a Brasília).
Irreverente é o compositor Arnold Schoenberg, oposto do Zagallo. Sofria de triscaidecafobia, pavor do treze. Seus raros erros estão concentrados no compasso desse número.
Estranha é a poeta Emily Dickinson. Permaneceu vinte e cinco anos reclusa em sua residência em Massachusetts. Consta o registro que saiu duas vezes do quarto para visitar o oftalmologista.
Existem fobias para qualquer drama. Não há limites no céu. Fobia de estrelas (siderofobia), por exemplo. Imagine o neurótico, que mora sozinho com o cachorro e teria que levá-lo para mijar. Olha a janela, repara o céu espocando brilho e lamenta: hoje não Rex, aguenta aí!
É um museu infindável de opções. Um playground masoquista. Fobia de ficar sentado (tassofobia), que atinge grande parte dos espectadores de Gerald Thomas; ou fobia de espelhos (isotrofobia), como feio deveria possuir, mas desperdicei a chance de cativar a mania na infância. E fobias terríveis, absurdas, indesejáveis inclusive aos inimigos, como de nudez (gimnofobia) e de sexo (genofobia).
Minhas dificuldades ainda não possuem nome científico. Uma delas é dar ré num carro no estacionamento lotado. Que tal apelidar de refobia? O globo ocular distorce a pacata garagem numa jamanta pré-histórica. Dezenas de veículos balançam nas costas do animal, que rosna e me ameaça. Entro na festa ou no restaurante em pânico, antecipando como me livrarei da manobra. Não solicitarei ajuda, é certo, o fóbico não confessa o que incomoda por vergonha. Suportará – em segredo – as alucinações. Tem consciência do ridículo de seu receio. A absoluta incapacidade de nomear engrandece o obstáculo. Ao mesmo tempo em que se cala, pondera que o ambiente inteiro repara nele e aguarda o vexame. Suará frio, umedecerá o rosto no toalete, não conversará nada que preste.
A segunda complicação comigo é a faca no café da manhã (proponho a alcunha de manteigageleiafobia). Meu pai conservava o ritual de me agradar e preparar bolachas com geléia de morango. Antes colocava manteiga em seu pão. Não mudava a ordem do gesto, muito menos limpava a lâmina na transição dos potes. Eu detestava manteiga. Comia a contragosto os resquícios brancos na crosta dura de sal, sem a mínima capacidade de reação, de falar um simples e educado “deixa que eu faço”.
Eu vejo que terminei fóbico pela independência. Sendo mais claro, sou dependente pela ilusão de independência. Acredito que ninguém tem condições e entendimento para me socorrer. Muito menos eu.
De todos os males, o que não suporto de verdade é que ofenda os inofensivos hábitos de Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Fóbico é um chamado carinhoso e me permite continuar vivendo.
Quem diz que não estou contraindo a fobofobia, o medo das próprias fobias? Já seria um amadurecimento.
Eu mesmo é que determinei a medida para não depender de especialistas. Sofro por antecipação, o que me põe a ensaiar a cena para diminuir o sofrimento. Só que organizo eventos para os atos mais minúsculos, dobrando o martírio no fim das contas. Ao invés de sofrer na hora, sofro um dia inteiro pensando na hora que vou sofrer. O incômodo passageiro é um desconforto permanente. Banalidades do cotidiano geram desproporcional tremedeira. No intuito de preveni-las, eu me canso em hipóteses pessimistas, desculpas furadas e boicotes.
Carrego uma postura catastrófica. Sou dramático nas amenidades, sóbrio nas tragédias. Sinto o pânico no lugar errado e no momento errado. Serei tranquilo num deslizamento, numa enchente, num incêndio. Mas perderei a lisura ao não encontrar um livro em minha biblioteca. O fóbico não é o que usa uma lupa para ampliar o tamanho das coisas, mas fixa a lente com tamanha insistência que acaba queimando o que vê com o reflexo do sol.
Meus medos são modestos. Exótico é o Roberto Carlos, que somente executa curvas à direita ao volante (chegará sempre a Brasília).
Irreverente é o compositor Arnold Schoenberg, oposto do Zagallo. Sofria de triscaidecafobia, pavor do treze. Seus raros erros estão concentrados no compasso desse número.
Estranha é a poeta Emily Dickinson. Permaneceu vinte e cinco anos reclusa em sua residência em Massachusetts. Consta o registro que saiu duas vezes do quarto para visitar o oftalmologista.
Existem fobias para qualquer drama. Não há limites no céu. Fobia de estrelas (siderofobia), por exemplo. Imagine o neurótico, que mora sozinho com o cachorro e teria que levá-lo para mijar. Olha a janela, repara o céu espocando brilho e lamenta: hoje não Rex, aguenta aí!
É um museu infindável de opções. Um playground masoquista. Fobia de ficar sentado (tassofobia), que atinge grande parte dos espectadores de Gerald Thomas; ou fobia de espelhos (isotrofobia), como feio deveria possuir, mas desperdicei a chance de cativar a mania na infância. E fobias terríveis, absurdas, indesejáveis inclusive aos inimigos, como de nudez (gimnofobia) e de sexo (genofobia).
Minhas dificuldades ainda não possuem nome científico. Uma delas é dar ré num carro no estacionamento lotado. Que tal apelidar de refobia? O globo ocular distorce a pacata garagem numa jamanta pré-histórica. Dezenas de veículos balançam nas costas do animal, que rosna e me ameaça. Entro na festa ou no restaurante em pânico, antecipando como me livrarei da manobra. Não solicitarei ajuda, é certo, o fóbico não confessa o que incomoda por vergonha. Suportará – em segredo – as alucinações. Tem consciência do ridículo de seu receio. A absoluta incapacidade de nomear engrandece o obstáculo. Ao mesmo tempo em que se cala, pondera que o ambiente inteiro repara nele e aguarda o vexame. Suará frio, umedecerá o rosto no toalete, não conversará nada que preste.
A segunda complicação comigo é a faca no café da manhã (proponho a alcunha de manteigageleiafobia). Meu pai conservava o ritual de me agradar e preparar bolachas com geléia de morango. Antes colocava manteiga em seu pão. Não mudava a ordem do gesto, muito menos limpava a lâmina na transição dos potes. Eu detestava manteiga. Comia a contragosto os resquícios brancos na crosta dura de sal, sem a mínima capacidade de reação, de falar um simples e educado “deixa que eu faço”.
Eu vejo que terminei fóbico pela independência. Sendo mais claro, sou dependente pela ilusão de independência. Acredito que ninguém tem condições e entendimento para me socorrer. Muito menos eu.
De todos os males, o que não suporto de verdade é que ofenda os inofensivos hábitos de Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Fóbico é um chamado carinhoso e me permite continuar vivendo.
Quem diz que não estou contraindo a fobofobia, o medo das próprias fobias? Já seria um amadurecimento.
Crônica publicada no site Vida Breve