FRANKENSTEIN CAMPEIRO
De sua casa, ornamentada com uma escultura de Mano Lima, Chapéu Preto não perde o mundo de vista.Foto Nauro Júnior.
Chapéu Preto teve que desmontar toda sua escultura de cinco metros e 1,2 mil quilos. As pernas estão na varanda, o tronco repousa no terraço, a cabeça e os braços esperam a ressurreição num canto cinza do pátio.
A obra terminou esquartejada e condenada ao esquecimento. Foi censurada na Expointer do ano passado e nenhum administrador de parque ou praça se interessou em adquiri-la. Mesmo de graça.
– 832 dias de trabalho postos fora e 836 fios de cabelos do meu Frankenstein que não serão vistos – contabiliza o artista, que marca cada dia de um trabalho novo com um risco na parede, à maneira de um presidiário.
O motivo do boicote é moralista. A figura masculina surge superdotada, com o membro protuberante à mostra. Os educadores caracterizaram a criação como uma afronta aos bons modos, os políticos reconheceram como atentado violento ao pudor.
– Imagina se estivesse excitada. Seria muito maior.
O homem feito de sucata homenageia Trançudo, sedutor folclórico da região da campanha do início do século 20. A lenda aponta que ele contava com um órgão de 32 cm.
– Não tenho culpa se o aparelho de David de Michelangelo é pequeno – não se conforma Chapéu Preto, pseudônimo de Derli Viera da Silva, 61 anos, um dos principais expoentes da arte primitiva no Brasil.
Derli transformou sua casa num ninho de metal, sonho de qualquer ferragem. Guarda 14 malas de ferramentas e trincheiras de quinquilharias pelos corredores. Sua oficina de fundição funciona a todo vapor de segunda a domingo, uma locomotiva de faíscas e metal derretido.
– Gosto de ser louco, não de ser burro.
Ele trabalha sem parar, mas não é recompensado. Vive na pobreza, com o salário mínimo de aposentado.
– Eu me levanto, nunca me acordei – descreve sua rotina incansável juntando sucata e elaborando ciborgues campeiros das 4h30min às 22h30min.
Um fornido saco de arroz congelado costuma ser a refeição do mês, tanto no almoço quanto na janta. Arranca duas colheradas e põe a comida de volta na geladeira.
– Sou 100% de ferro na alma. Não adoeço, enferrujo.
Apesar de completar cinco décadas de escultura, os pedidos e encomendas são milagrosos. Alguns clientes esquecem de buscar e pagar as mercadorias.
Aceita tarefas ínfimas para salvar o orçamento. Entalha mesas e portas, se for o caso. Faz brinquedos e troféus de futebol em emergências.
– Os maiores artistas morreram na miséria, acho que não posso enriquecer.
Mesmo atolado de preocupações, a esperança de Chapéu Preto é alegre. Um cumprimento do vizinho e ele já reaquece o otimismo. Não há quem não o conheça em Alegrete, cidade de 78 mil habitantes, a 487 km da capital. É um ponto turístico do distrito de Caverá. A fachada residencial chama atenção. Traz uma estátua de cinco metros, que reproduz o gaiteiro Mano Lima. O cenário exótico ainda recebe móbiles, rodas de carreta e placas com declarações de amor à querência.
Loquaz, cantante, nunca tira o chapéu, desde que se apaixonou por Santos Dumont, o pai da aviação, e desejou imitar seu acessório sem abas. Bigodudo, grisalho, olhos triangulares e sobrancelhas graves, usa de propósito um avental de couro e calças rasgadas. Para agir como um mendigo diante da inspiração.
– Não me visto bem, não é algo que me agrada. Aquele que muito se arruma não sabe nem amarrar um arame – diz.
Sua história é mais triste do que se imagina. Atrás da irreverência, esconde feridas fundas, que não cicatrizam com o sol e o tempo. Sua esposa Joana Maria, 51 anos, sofre de depressão e mora no asilo. O mesmo acontece com sua filha Katiusca, 36 anos , internada numa clínica.
– Minha solidão é de Jó. Leia a Bíblia para me entender – desafia.
A infância ainda foi mais dura. Sua mãe Irene morreu de parto, o pai Aristides não suportou a perda, envenenou os três irmãos – Alcides, 2 anos, Alcione, 3 anos e Delmar, 4 anos – com Tatuzinho e se matou em seguida.
– Não morri porque corri para longe. Meu coração corre até hoje dali.
Órfão aos 7 anos, recorreu à arte para se distrair dos pensamentos turvos. Não economiza sua postura crítica. Como um bom filho da República Federativa do Alegrete, provoca a Capital:
– Laçador a pé não existe. Cadê o cavalo do laçador?
Nem o poeta Mario Quintana escapou de sua ironia. Ficou chateado com o ilustre conterrâneo, quando ele comentou que nasceu em Alegrete por acidente.
– A declaração me magoou como a morte de um segundo pai.
Ele foi atrás do Quintana na Feira do Livro de Porto Alegre, em 1981. Encontrou o escritor sentado na Praça da Alfândega, debaixo dos jacarandás, e despejou uma maldição em versos, demonstrando que também era poeta:
– Escrever é coisa fácil/ e confortável demais. /Difícil é esculpir defunto/ sem os restos mortais.
O autor da Rua dos Cataventos não entendeu a ameaça e fugiu de volta para a redação do Correio do Povo.
– Admirar é desafiar – explica a traquinagem.
A aspiração de Chapéu Preto é construir um gaúcho gigantesco com cuia na mão em Torres, às margens do Rio Mampituba, um personagem maior do que o Padre Cícero de Juazeiro do Norte (CE), maior do que a Usina do Gasômetro, que possa ser vista do céu pelos aviões, planadores e, de preferência, pelo anjo Malaquias.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 31, 10/12/2011
Porto Alegre, Edição N° 16913
Conheça o ateliê maluco de Chapéu Preto
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Porto Alegre, Edição N° 16913
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