FURTO QUALIFICADO
Arte de Cínthya Verri
— Você é poeta?
O professor Guilhermino César colocou meu pai numa sinuca de bico. Ele estranhou a provocação, se devia dizer que sim e ostentar orgulho ou responder que não e insinuar covardia. Optou por abandonar a gaveta e assumir os versos.
— Sim, sou.
— Tenho uma pergunta para ver se realmente é poeta. Uma só pergunta.
O pai, então com 21 anos e aluno de Guilhermino, entrou em pânico. Duas ou três perguntas não são perigosas, uma única pergunta é assustadora, parece que é caso de vida ou morte.
— Quantos guarda-chuvas você perdeu na vida?
— Você está de sacanagem comigo, professor.
— Não, querido, me responde, é o grande teste da poesia, não existe outro melhor.
— Acho que perdi mais de vinte.
— Boa média. Mostra que é poeta. A poesia é arte da distração, esquecer as coisas para dar valor às pessoas.
Ouvia essa história de meu pai quando lamentava por mais um guarda-chuva deixado na escola. A mãe me recriminava pela falta de atenção, e ele se envaidecia da minha vocação perdulária. Cochichava alegre em meus ouvidos:
— Você vai longe assim, meu filho.
Era para eu ter virado Goethe na adolescência. Extraviei mais de cinqüenta guarda-chuvas antes da maioridade. Às vezes tentava ser uma mãe comigo e me controlar, mas não havia jeito, bastava fechar o cabo que o objeto desaparecia de mim. A existência do guarda-chuva é inviável: seco, não pode ser aberto dentro de casa que dá azar; molhado, é posto de lado para não sujar o chão.
Hoje pode cair o mundo, desabar o oceano na cabeça, que vou para rua desligado do toldo preto. Ando encostado nas paredes. 1, 2, 3, 4 e fui. Pulo as poças a cada contagem e me protejo nas marquises. O curioso é que saio sem nada e volto sempre com um guarda-chuva. Acho que pego daquelas cestas de entrada de restaurante, de recepção de consultório, onde estiver. Não é de propósito, juro, difícil acreditar. Um sociólogo diria que é um ato ideológico: guarda-chuva não tem proprietário. Um neurologista confiaria na tese de que guarda-chuva não tem memória. O terapeuta avisaria que é um ato falho, para me vingar de todos que desperdicei na vida.
A verdade é que não penso, tomo, sou um cleptomaníaco dos bairros Bela Vista e Moinhos de Vento.
Fui ver o cabide, possuo vinte exemplares. Nenhum foi comprado. E não há como devolver. O sol do dia seguinte cancela a reabilitação.
Já imagino o que Guilhermino César diria de mim: coisa de prosador roubar guarda-chuva.
Crônica publicada no site Vida Breve