GAIA
Percebo que fiquei demais em um hotel quando a camareira começa a mandar em mim. É hora de fechar a conta.
Ela entra no quarto sem pedir licença ou bater na porta. Abre e vai mandando descer ao café ou dar um passeio para não atrapalhar seus horários.
Estou tão sozinho que obedeço.
O trauma é que ando viajando mais do que permanecendo em casa. Na última semana, passei por Belo Horizonte, Londrina, Presidente Prudente, Erechim, Brasília, São Paulo, São Francisco Xavier. Uma cidade por dia, um hotel por dia, cinco estados distintos.
Não suporto me agachar diante de um frigobar. Não tolero mais geladeira anã. A normalidade me escapa.
Tenho saudade de abraçar uma geladeira maior do que eu. Com mais de três andares. Com alguma coisa apodrecendo na última gaveta. Cheirando mal para perder tempo procurando e investigando com o nariz.
Meus olhos estão virando um frigobar. Minhas pupilas são latas de Coca-cola.
Levanto já me atrapalhando com compromissos, entrevistas, palestras e mapas. Há sempre um rádio-relógio para uniformizar os quartos. E uma Bíblia que muitos usam para ler no banheiro. A Bíblia é confundida com um laxante, uma espécie de jornal da eternidade.
Vivo sucessivamente o Dia da Marmota, com a diferença de que nunca é igual e procuro semelhanças e uma rotina que me torne consecutivo.
Não guardo o que aconteceu ontem e anteontem. Minha memória demora a baixar.
Preciso olhar pela janela e me situar, isso quando não está chovendo. Até decorar o número do apartamento exige esforço. Lembro que estava no 506 no Hotel de Londrina e cismei em tentar arrombar a porta trancada do 506 do Hotel de Presidente Prudente. Embaralhei as origens. Um casal — suado do banho — me atendeu com a cordialidade conferida a um garçom. Logo fui denunciado para a portaria, sob a alegação de que incomodava o descanso e o sexo de outros hóspedes.
Insônia provoca loucura. Falta de cama própria é mais devastadora: altamente alucinógena. Embarquei num táxi — onde? — com oito ursinhos de pelúcia no painel. Uma inacreditável estante de criança no vidro dianteiro. Os animaizinhos estavam vestidos com roupas de boneca. Vestidos apertados, números menores do que o adequado. Eram ursinhos travecos.
Se estivesse bebido, se fosse de noite, seria perdoável. Mas partia ao almoço, num solaço das 13 horas. De vestido longo vermelho e salto alto, uma loira cinquentona dirigia o automóvel. A taxista parecia que voltava de uma festa. Ou será que seu prefixo luminoso indicava uma boate? Numa atitude esquisita, quase íntima, pediu para que segurasse sua bolsa e atualizou o batom dos lábios usando o espelhinho. Aquilo me deu medo. Sempre que experimento uma história, vejo se alguém acreditaria nela. Ninguém confiaria na cena, o que aumenta as chances de um assassinato. O que não posso escrever me mata.
As fantasias mórbidas vêm aumentando com o deslocamento sucessivo. Na serra da Mantiqueira, fui colocado na Fazenda Gaia. Dois quilômetros de mata antes de alcançar a pousada. Imagina se morro numa fazenda com esse nome? Nenhum gaúcho me perdoaria. Todo mundo irá pensar que me converti, que me transformei num vegetariano, que reneguei o espeto corrido e a costela em meus derradeiros instantes poéticos. Não duvido que Gabeira comparecesse ao enterro e que meu caixão descesse forrado com a bandeira crespa da alface e da rúcula.
Desperto sem saber onde estou. Suspeito que a doença avança ao segundo estágio: quando não saberei mais quem sou.
Crônica publicada no site Vida Breve