HIDRATAÇÃO PELAS PALAVRAS
Relacionamento se faz no detalhe, na pronúncia, no modo como nos comportamos longe das datas festivas e das folgas dos finais de semana. Ou se tem uma rotina apaixonada ou se é levado pela agressividade. Não identificamos o quanto perdemos inúmeras chances de delicadeza ao longo do dia. Desperdiçamos a gentileza com quem amamos.
Parece que a educação deve ser usada para os estranhos, aquele que está ao nosso lado é obrigado a aguentar grosseria, irritação, azedume, maus tratos.
Entramos no jogo de compensações: quando tristes, maltratamos; quando felizes, festejamos, e não enxergamos problema nenhum nesta alternância.
É preciso criar um mínimo civilizacional, ainda que nos dias mais trágicos, para não ferir os próximos e não destruirmos os laços com as nossas mágoas. Se seguirmos os nossos impulsos, seremos bichos. Morderemos e atacaremos com as palavras.
Ninguém desperta de bom humor (trata-se de uma lenda), o que existe é um redobrado exercício de concentração para sorrir de manhã cedo. A docilidade é uma ardilosa construção psicológica e temperamental. Maquiamos o caráter para conviver.
Generosidade, portanto, consiste em atenção lapidada, em refinada vigilância, em não ser tomado pelo impulso egoísta de que o outro tem a obrigação de nos servir e nos entender.
Só é acabar a água na geladeira que já podemos antever o temperamento de cada um na relação. É uma frase inofensiva que traduz uma gama variada de sentimentos. Por uma declaração banal e singela, já antevemos se a pessoa pretende discutir, agredir ou nos confortar.
– Você me deixou sem água? (autoritário)
– Nem água tem nesta casa! (apocalíptico)
– Esqueceu de comprar água? (acusatório)
– Esqueci de comprar água! (culpado)
– Temos que comprar água! (solidário)
– Você não presta atenção em nada! (oportunista)
– Acabou a água, vou sair para comprar! (engajado)
– Você deseja que eu morra de sede? (filial)
– Cadê a água? (curto e grosso)
– Não temos mais dinheiro para comprar água? (inseguro)
– Vamos beber água da torneira por enquanto. (conformado)
– Farei uma lista de supermercado para não esquecermos nada. (compreensivo)
Quando acabar a água, cuide também para não acabar o amor.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 16/08 /2015 Edição 18263
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 16/08 /2015 Edição 18263