INEXISTÊNCIA FELIZ
Na adolescência, eu vinha em primeiro lugar. Eu lutava por mim. Era vaidade e também proteção. Como ninguém me entendia, assim é que eu via o mundo, eu atacava para me defender. Não admitia críticas e reclamações. Já esperneava quando alguém questionava o meu estilo, a minha bagunça, o meu quarto, as minhas roupas, o meu tempo, as minhas horas vadias num game.Minha juventude foi cortada na raiz pela paternidade. Pai cedo, aos 20 anos, mudei de postura. Eu passei a me preocupar comigo em último lugar. A aparência já não importava tanto, os sonhos profissionais de longínquos intercâmbios não faziam mais sentido, comecei a guardar dinheiro para fraldas e criação de minha menina.
Baixei a âncora definitivamente. Sou um outro homem a partir dali. Eu me deixo para depois. Não voltei para o meu ego.
Primeiro dar banho no filho para depois pensar no próprio banho. Primeiro dar comida para o filho para depois me alimentar. Primeiro servir os filhos para depois me servir. Primeiro passear com o filho para depois me divertir. Primeiro arrumar a casa para depois renovar as amizades. Primeiro curar a gripe do filho para depois resolver a minha enxaqueca. Primeiro pagar as contas para depois garantir algum lazer e comprar a cervejinha.
As brigas amorosas e os desentendimentos ficaram em segundo plano, poderia resolver depois que o filho dormia. Só depois. Eu existo depois de mim.
A paternidade alterou o meu sono, durmo leve, vigiando os barulhos da porta, como um cachorro e sua frágil residência de papel. Nunca mais atravessei o meio-dia. Nunca mais despertei de tarde. As baladas e shows se mantiveram distantes, quase um outro país na mesma cidade. Adotei uma postura militar, guardando fôlego para a sobrevida na selva doméstica.
Eu me dedico a tarefas secretas e invisíveis para as redes sociais, como encher a geladeira, preparar a refeição, recolher os badulaques do chão, lavar a roupa, guardar a louça e brilhar o fogão. Mais da metade de minha vida não serve para postagens e likes.
Vivo uma completa inexistência, uma feliz inexistência, para meus filhos ganharem visibilidade e saúde. Deixo a minha lição na folha avulsa de meu rosto, talvez vire carta para os filhos, talvez o vento leve para longe e nada da minha dedicação mereça reconhecimento. Talvez os meus pequenos descobrirão um dia que sacrifício é cuidado, renúncia é generosidade e perder tempo pelo outro é humildade. Talvez eles nunca tomem os meus olhos entre as suas mãos, os meus olhos aflitos e esperançosos de pai, não entendam o quanto ficar perto é ir longe, mas não tenho dúvida de que fiz o possível, todo o possível, com a convicção de que amor mesmo é dado livremente e não se pede de volta.
Publicado em Vida Breve em 20/9/2017