JANTAR COM OS TIOS DO INTERIOR
Arte de Vito Campanella
É jantar fora com os pais e os tios que você se sentirá uma criança de novo. Por mais que seja adulto e independente.
Eles manterão uma conversa fora do seu alcance, rememorando nomes apagados, mortos, distantes.
A parentela italiana não dá mole. Assume a condição de testemunha alimentar da reconstrução da genealogia familiar, gozará do privilégio de acompanhar a biografia oral, na íntegra, de seus antepassados.
Mesmo que tenha avançado uma geração, eles ainda estão uma geração à frente.
A princípio, participará do entrevero. Experimentará rápida glória social, que poderia ser resolvida no abraço de chegada. Eles vão perguntar o que anda fazendo, o desempenho do trabalho, o status de seu relacionamento, para logo se
dispersar aos assuntos que mais interessam: quem morreu, quem adoeceu, quem se separou, quem está bem de vida, quem faliu, quem mudou de orientação sexual, quem engravidou. É uma agência de notícias da última metade do século. Os ouvidos adoecem devagar.
Até porque tia que é tia do interior fala baixo, enquanto o tio bebe tudo o que não deve. É um casal infalível: nenhum atrapalha o prazer do outro.
Ainda estão no aperitivo e você tem a convicção de que assiste a um documentário do Discovery. Carece de legendas para descansar os olhos. Naquele breve encontro, ouviu uma cota superior a um mês de trololó com seus amigos.
Como é difícil se inserir no debate, fica esperando a comida. Olhando para o infinito de uma televisão ligada e sem som, no fundo do ambiente. Quando se flagra fazendo leitura labial da novela é que está entediado e seu corpo e espírito estão definitivamente divorciados. Desapareceu materialmente dali.
A infância vem à tona. Quer ir embora. Quer dormir. Quer retornar para casa.
Acabou sua paciência. Precisa ser simpático, agradável, maduro, mas não tem mais como se comportar. A aparência vai se afundando com aquelas vozes distantes que parecem sobrevoar seu quarto depois das 23h. Recorda que, quando pequeno, fechava as pálpebras escutando as gargalhadas dos adultos na sala, os únicos que tinham o direito de dormir tarde.
Sim, voltou a ser um menino birrento, apesar da barba cobrindo o rosto. Impossível concorrer com a idade dos tios e seu apetite interminável de colocar o papo em dia. Estão recém na década passada e não demonstram o mínimo cansaço ou intenção de apressar os fatos.
Já observa o garçom com ternura, já repara quem fecha a conta com inveja, já começa a puxar a toalha, já começa a brincar com os palitos Gina e o saleiro, já torce para que ninguém peça a sobremesa, já puxa o braço do pai, já a mãe intervém e suplica para que tenha modos: “Vamos ouvir o que sua tia está contando, é importante!”.
Só falta descer para debaixo da mesa e brincar com os joelhos da família. Entrou no restaurante com a altivez de homem feito e sairá com alma de cachorro.
Será sempre a criança daquela família, sonhando com sua cama e arrependido de aceitar o convite para programa de gente grande.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 23/11/2014 Edição N°17992