Blog do Carpinejar

LAURA

Arte de Eduardo Nasi
 
Eu e meu marido saímos cedo de casa. Ele acorda antes de mim. Nem o vejo: pressiona seus lábios em minha cabeça e parte para o curtume.
 
Às vezes exala de sua boca o aroma de café com leite. Eu gosto de ser beijada dormindo. A testa é a última porção do rosto que lavo na hora de acordar — preservo sua benção.

Não nos falamos durante o dia. Começo o expediente às 8h na fábrica de costura. O intervalo de almoço é de 45 minutos. Nossa vida é baixar o queixo e se concentrar em panos e couros.

Mário ainda trabalha longe, em outra cidade, chega em nossa residência depois da meia-noite. Preparo comidinha e guardo nas panelas. Nunca janto com ele.

Ele pressiona seus lábios em minha cabeça e dorme. Aprendeu a tirar a roupa sem me acordar. Imagino que seus sapatos são silenciosos; as mangas, esvoaçantes; os casacos, de pluma.

Sua nudez não pesa mais no colchão. Ele treinou desaparecer de mim.

É um homem que cuida de meu sono, já que não pode cuidar de minhas palavras.

Experimentamos a solidão do casamento. Aperto o forro dos bolsos para fingir sua mão na minha mão. Sua mão pesa igual à gaveta da cozinha.

Quando cruzamos um olhar no corredor, é uma janela. Ele não amaldiçoa o cansaço, o salário, a falta de esperança. Agradecemos a saúde para continuar.

Eu me habituei com o raso, é só pôr mais água no feijão.

Somos acostumados. Juntamos nossas economias para pagar a casinha. Há mês que sobra, arrumamos até um armário novo para o quarto, com prateleira para botar cobertas e lençóis.  Pela primeira vez, tiramos as caixas de papelão debaixo da cama.

Meu homem é do mundo. Eu sou do mundo. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado sem ele. Sem trocar impressões ou pedir ajuda ou chorar. Sou quase uma viúva. Ele é quase um viúvo.

Mas jamais reclamo porque tenho meu domingo.

No domingo, nos acordamos no mesmo instante. E eu dou um beijo em sua testa.

Preparamos o mate e sentamos na varanda.

Ele me fala o que fez, o que pretende fazer, o que nunca fará.

O vento sopra em nossas oliveiras e ele pergunta se estou com frio.

Naquele momento, ele é meu homem, somente meu, de mais ninguém.

Quando ele é meu, eu também me pertenço.

São seis horas por semana em que não preciso dividi-lo. Cheiro suas golas, deito em seus ombros e penteio seus cabelos com as unhas.

Parece pouco, mas é toda a minha vida, por isso despertarei o resto dos meus minutos. Duvido que alguém seja mais feliz.
 
 




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

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