LONGEVIDADE DO AMOR
Sempre que duas casadas se encontram disputam quem está mais tempo com o seu par. Existe uma concorrência pelo troféu moral.Elas nem percebem a mania, é um cacoete involuntário, como coçar os olhos diante do sono.
Fui visitar o ateliê da estilista Solaine Piccoli, que vem confeccionando o vestido de noiva da minha mulher.
Proibido de espiar os movimentos no provador pela superstição da cerimônia, puxei conversa à toa e perguntei quanto tempo ela tinha de casada. Solaine encheu a boca: 43 anos juntinho de Ernani.
Cândida, a sua assessora, se sentiu ofendida com a realeza da amiga e atalhou:
– Eu estou casada há 39 anos, mas namoro o meu marido há 44. Se é por isso vou completar bodas de rubi no ano que vem.
Solaine não se deu por vencida:
– Mas, se é por namoro, eu estou há 49 anos com Ernani e completarei bodas de ouro.
Só eu devo ter visto Cândida bufando de raiva. Buscou disfarçar a contrariedade e logo emendou:
– Mas eu conheço de vista o meu marido há 51 anos. Amizade também conta, não?
– Pode contar, como quiser. Daí tenho 60 anos de amor à primeira vista e comemoro bodas de diamante – replicou Solaine.
A partir de uma pergunta banal, fui exposto a um coliseu de leoas famintas pela posteridade romântica. Pretendiam ganhar o título de maior longevidade no amor. Não aceitavam a proximidade da adversária.
Para assinalar a vitória da intimidade, usavam qualquer indício remoto de antiguidade dos laços com os seus homens, desde aceno a esbarrão na rua.
As amigas colocavam a cumplicidade em risco. Gritavam, esperneavam, batiam na mesa. No calor da discussão, jogavam pesado, dispostas a desclassificar a rival questionando separações em algum período e somando finais de semana longe.
Não entendia absolutamente nada. Ambas atingiam seis décadas e uns quebrados de convivência com os seus maridos naquela conversa, apelando para os mais platônicos sinais, e eu não conseguia fechar as contas. Não aparentavam, cada uma delas, mais de 50 anos de idade. Já eram mais casadas do que nascidas.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
23.10.2016