LUGAR DE SER
Arte de Salvador Dali
Estou solteiro de novo.
Ela se separou de mim. Mas eu não me separei dela.
O desagradável é que sou escritor, eu trabalho em casa. Não conto com um escritório para fugir e mudar de assunto. Identifico sua falta a todo instante.
Venho buscando mudar de hábitos, mas não está surtindo efeito. Passei a espiar classificados.
Localizo alguém vendendo uma telepizza.
Em vez de pensar:
- Como assim telepizza? Que absurdo, o que o cara está vendendo é apenas uma linha telefônica.
Eu penso:
- Coitado, ele está vendendo uma telepizza. Quase compro por compaixão. Eu não me divirto com aquilo que eu achava engraçado, eu me comovo.
Continuo descendo para levar a Cora a fazer xixi três vezes ao dia, mas sem a Cora, nosso cachorrinho foi junto.
Meu coração é um cativeiro.
Tenho o controle remoto da tevê, mas me enxergo sem opção.
Tenho a liberdade do mundo para sair, e me sinto preso.
Tenho tempo de sobra, e me vejo sempre atrasado.
Tenho espaço nas prateleiras e nas estantes, mas nunca encontro o que quero.
Tenho a cama inteira à disposição, mas permaneço dormindo no cantinho.
Ninguém rouba mais minhas cobertas, mas sinto frio.
Retirei os porta-retratos da residência.
Mas olhar dentro da geladeira é também um porta-retrato dela.
Olhar a geladeira é descobri-la: seus morangos, sua mostarda forte, seu pãozinho integral, sua cerveja.
Como diz Karl Marx, que entendia tudo de divórcio:
"Separados do mundo, uni-vos"
Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (31/8) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Fernando Zanuzo: