LUTA DESIGUAL
Restaurante com televisão provoca calafrios. É uma maneira de compensar a falta de assunto da família. Você espia, detesta o programa, olha de novo e já está mastigando de boca aberta. A tevê ameaça o emprego do garçom. Um dia, a gorjeta será direcionada para pagar o canal a cabo.
Aos sábados, gosto de almoçar tarde e quebrar o rigor da semana. Eu e minha namorada escolhemos uma mesa colada às paredes de madeira da cantina.
Sentamos num canto sossegado, romântico, com a privacidade para encostar as pernas a cada declaração. Havia retratos antigos e um cheiro de hortelã que bate qualquer incenso.
Iríamos pedir o prato quando minha namorada saltou: “Vamos trocar de mesa?”.
Coloquei as mãos no tampo para verificar se estava firme, a mesa não estava manca.
— O que houve?
— É Van Damme na tevê.
Não acredito, ela é fã do troglodita Van Damme. Do fisicultor bailarino. Daquelas ações intermináveis em que o herói é maltratado, chora com os olhos arregalados e parte para uma represália vitoriosa.
A televisão de 40 polegadas me anulou. Sugeria com afinco opções do cardápio e a namorada rebatia com desinteresse:
— Pode ser, pode ser.
Não entrava em pormenores para não prejudicar a concentração.
- Agora é o spacatto dele nas cadeiras, vê?
E suspirava, como se o spacatto fosse uma obra de arte, o Davi de Michelangelo.
Cínthya não se limitava a uma audiência silenciosa, discreta, dublava as principais cenas de O Grande Dragão Branco. Antecipava as falas, festejava com uma careta o espirro do sangue que não favorecia o avanço da minha colher no spaghetti ao sugo.
— O melhor amigo dele quase morre espancado, repara na maldade do Chihsing (?). É o início da vingança. Vingança, vingança!
Ela vibrava com os braços, o triunfo da pancadaria dependia estranhamente de sua torcida.
Eu me apavorei: há um homem na alma de minha mulher. Toquei em sua rima labial para procurar buço, não havia nada. Nenhum pelo no rosto. Passei a temer seu passado, sua criação com pôster de Arnold Schwarzenegger na porta do quarto, seu histórico na bilheteria do cinema em Passo Fundo ao figurar como reincidente nas séries Rocky e Rambo.
Em vez de coraçõezinhos e estrelas, especulei que marcava seu querido diário com rifles, bazucas e caveiras. Seus clássicos não eram Casablanca e Love Story, e sim Código de Silêncio, de Chuck Norris, Desejo de Matar, de Charles Bronson, e Operação Dragão, de Bruce Lee. E eu que me considerava insensível pelo excesso de futebol em casa.
Necessito loucamente de um exorcista. Levá-la a um trabalho contundente de magia negra. Acompanhá-la a uma faxina espiritual. Não sei se funcionaria. Na terreira, tenho minhas dúvidas de que aceitaria a Pomba Gira. Baixaria nela o Van Damme e mataria o pai-de-santo com golpes de kickboxing, karatê shotokan, muay thai e taekwondo.
Prometo dar o troco. Ainda vou mudar de mesa para assistir Uma Linda Mulher, meu filme preferido.
Aos sábados, gosto de almoçar tarde e quebrar o rigor da semana. Eu e minha namorada escolhemos uma mesa colada às paredes de madeira da cantina.
Sentamos num canto sossegado, romântico, com a privacidade para encostar as pernas a cada declaração. Havia retratos antigos e um cheiro de hortelã que bate qualquer incenso.
Iríamos pedir o prato quando minha namorada saltou: “Vamos trocar de mesa?”.
Coloquei as mãos no tampo para verificar se estava firme, a mesa não estava manca.
— O que houve?
— É Van Damme na tevê.
Não acredito, ela é fã do troglodita Van Damme. Do fisicultor bailarino. Daquelas ações intermináveis em que o herói é maltratado, chora com os olhos arregalados e parte para uma represália vitoriosa.
A televisão de 40 polegadas me anulou. Sugeria com afinco opções do cardápio e a namorada rebatia com desinteresse:
— Pode ser, pode ser.
Não entrava em pormenores para não prejudicar a concentração.
- Agora é o spacatto dele nas cadeiras, vê?
E suspirava, como se o spacatto fosse uma obra de arte, o Davi de Michelangelo.
Cínthya não se limitava a uma audiência silenciosa, discreta, dublava as principais cenas de O Grande Dragão Branco. Antecipava as falas, festejava com uma careta o espirro do sangue que não favorecia o avanço da minha colher no spaghetti ao sugo.
— O melhor amigo dele quase morre espancado, repara na maldade do Chihsing (?). É o início da vingança. Vingança, vingança!
Ela vibrava com os braços, o triunfo da pancadaria dependia estranhamente de sua torcida.
Eu me apavorei: há um homem na alma de minha mulher. Toquei em sua rima labial para procurar buço, não havia nada. Nenhum pelo no rosto. Passei a temer seu passado, sua criação com pôster de Arnold Schwarzenegger na porta do quarto, seu histórico na bilheteria do cinema em Passo Fundo ao figurar como reincidente nas séries Rocky e Rambo.
Em vez de coraçõezinhos e estrelas, especulei que marcava seu querido diário com rifles, bazucas e caveiras. Seus clássicos não eram Casablanca e Love Story, e sim Código de Silêncio, de Chuck Norris, Desejo de Matar, de Charles Bronson, e Operação Dragão, de Bruce Lee. E eu que me considerava insensível pelo excesso de futebol em casa.
Necessito loucamente de um exorcista. Levá-la a um trabalho contundente de magia negra. Acompanhá-la a uma faxina espiritual. Não sei se funcionaria. Na terreira, tenho minhas dúvidas de que aceitaria a Pomba Gira. Baixaria nela o Van Damme e mataria o pai-de-santo com golpes de kickboxing, karatê shotokan, muay thai e taekwondo.
Prometo dar o troco. Ainda vou mudar de mesa para assistir Uma Linda Mulher, meu filme preferido.
Crônica publicada no site Vida Breve