LUXURIOSO
Minha mãe assistia novelas, eu assistia propagandas. Acreditava que as propagandas eram novelas para crianças. Curtas, rápidas.
Andava como cego, raspando as mãos nas paredes. Minhas mãos ficavam vermelhas de tanto caminhar.
Achava que uma propaganda completava a outra. E a novela era a propaganda da propaganda. Ninguém nunca me provou o contrário, até porque nunca falei isso. O segredo é uma forma de manter a opinião.
Eu completava o enredo: juntava carros com máquina de lavar com gel para cabelos. A cada dez minutos, um novo capítulo. A infância mistura mais os olhos do que a comida.
Suspirava quando apareciam as caixas de sabonete de Madeiras do Oriente, fascinado por uma expressão que uma loira dizia: espuma luxuriante. Aquilo me excitava, mesmo não entendendo o significado. A excitação aumenta com a incompreensão. Batia uma vontade de raspar as pernas nos muros. As pernas ficaram vermelhas de tanto andar parado.
Eu queria ser invisível. Havia uma mulher invisível na televisão. Creio que ela usava uma poção ou talvez as caixas de sabonete de madeiras do Oriente. Espumava e desaparecia. Luxuriante.
Na primeira tentativa de sumir, empreguei camadas de Minancora por todo o corpo. Aumentei a visibilidade. Rendeu efeito oposto, mas senti que estava no caminho correto. O contrário é o vizinho do acerto. Um inimigo ama com o ódio. Eu não tinha inimigos. Criava superstições para evitar danos e doenças. Meu medo não dormia. Olhava as fotos da família para definir qual era a foto de morto de cada um de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda estava viva. É a foto que sairá no jornal ou no anúncio fúnebre ou na lápide. No instante em que ela é tirada, a morte surge. Já posso ter minha foto de morto, cabe analisar com cuidado os álbuns de família.
Quem mais chegou perto da extinção foi o tio Luis, que entrou em coma por dois dias. Coma é um comercial da morte.
Não desejava morrer, mas desaparecer para voltar. A morte é uma desaparição perfeita. Eu me acalmava com os ruídos.
Pensava e respirava em separado. A asma complicava meu raciocínio. Um gato chiava dentro de mim – não o enxergava por mais que cavasse com a boca.
Alentava hipóteses malucas para apagar a carne por instantes. O talco que gerava a falta de ar deveria ser o responsável pela minha salvação. Uma nuvem atravessa aviões. A nuvem é transparente. O que faz mal pode curar. Como o antídoto retirado do próprio veneno de cobra.
Abandonei as roupas, respirei fundo e borrifei o pó inteiro numa só cremação. Meu pai recebia escritores, entre eles o Mario Quintana. Conversavam animados na sala, tomando cafezinho e criticando qualquer um que ousasse escrever poesia.
Atravessei pelado o longo corredor e passei pela sala cheia de visitas. Girei o corpo, ginguei a cintura, arrisquei polichinelo e nenhuma reação, susto, torcicolo. Não fui visto, consegui. Consegui! Voltei ao quarto e beijei o milagroso Johnson. Chato é que veio uma cisma, recomendando confirmar o experimento. Acabei seduzido pelo poder da repetição. A repetição é domínio.
Retornei ao pulmão da residência. O silêncio depois do grito é escandaloso. O pai me puxou pelos cabelos, espalhou poeira pelos tapetes, e me botou de castigo. Restei no quarto. Sem sinal.
Entendi que não é possível ser invisível duas vezes seguidas. Eu me excedi.
Crônica publicada
no livro "Os Televisionários"
(ARdoTEmpo, 400 ps),
(ARdoTEmpo, 400 ps),
de Walmor Bergesch