Blog do Carpinejar

MACHO PELA METADE

Arte de Eduardo Nasi
 
Não entendo os barulhos do carro.

Afora a luz obrigatória da gasolina, ignoro o que significam os símbolos menores do painel. Eu ainda me confundo ao disparar o limpador de para-brisa.
 
Não foi uma vez que saí com farol alto em vez dos normais e recebi advertência dos outros motoristas. Não me pergunte qual a calibragem dos pneus, está anotado em algum lugar.

Metade do manual do veículo é desconhecido para mim. Falei metade, mas metade é otimismo.

Não troquei pneu na vida, o macaco hidráulico não recebeu graxa de minha mão.

Uso carro, não moro no carro.

Se surge um ronronar diferente, não sou como meus amigos que logo arriscam um diagnóstico:

— São as pastilhas dos freios.

— É a embreagem.

— Pode ser as cruzetas.

Admiro o dom mecânico dos colegas. Não alcanço nem o que é cruzeta para participar do leilão de hipóteses e mentir vantagem.

Diante de falhas, abandono o Sandero na oficina e não questiono o orçamento.

Na rua, um ladrão é capaz de levar a estepe do porta-malas que nunca notarei o furto.

Em compensação, sei reconhecer a tosse do meu filho em enfermaria lotada.

Sei reconhecer o choro de meu filho em praça dominical.

Sei reconhecer o riso de meu filho em pleno alvoroço do recreio.

Sei reconhecer o grito de meu filho no estádio de futebol.

O filho é a universidade do meu instinto. Decorei seus timbres da dor ao entusiasmo, do berro à gargalhada.

Meus ouvidos são caseiros. Meus ouvidos são cardíacos. Meus ouvidos são caninos em casa.

São vários anos acordando com seu rosto no café da manhã, antecipando seus desejos, adivinhando seus rancores, repondo as cobertas do meu menino na madrugada.

Pelos silêncios e omissões, identifico quando experimenta a alegria de uma novidade.

Pela maneira de abaixar a cabeça, percebo quando pede ajuda.

Pela pressa da letra no caderno, vejo sua displicência e vontade de voltar aos jogos no computador.

A duração do seu bocejo denuncia a insônia. O olhar parado no copo revela o descontentamento com o dia.

Sofro com seu possível sofrimento. Eu me preocupo com a nova turma, se suporta boicote ou é amado, se está comendo o suficiente, se está feliz, se tem esperança.

Junto pressentimentos, sonho rumores, advogo sinais.

Sou mais pai do que homem.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

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