MÃEZINHA
Minha mãe quebrou um pote de vidro de biscoito. Daqueles imensos, neto dos baleiros coloridos do armazém, com um aterro de farelos ao fundo que contentaria um cardume.
Eu não como biscoito. Não pego biscoito. Não sei qual o gosto do biscoito, se era de polvilho ou de maizena. Estava a dezenas de quilômetros do tropeço doméstico, tenho 38 anos, minha barba cresce grisalha.
Tanto faz, a mãe encontrou um jeito de me incriminar:
- Quebrou porque alguém não fechou direito!
Mesmo distanciada de mim, mesmo em área rural, aliviou sua responsabilidade e insinuou a molecagem. Teria sido eu quando a visitei em data incerta e hora misteriosa. Não adianta rebater:
- Pô, não tem sentido.
Não há justiça para mãe. Quando o filho é generoso, ela sempre dirá que é culpado. Se ele é criminoso confesso e presidiário veterano, dirá que é inocente. Não é que o filho faz o contrário do que a mãe pede, a mãe fala o contrário do que o filho faz.
Em sua concepção, ela não quebrou o pote, alguém alterou sua rotina impecável. Eu teimei em mexer nos seus mequetrefes altamente vedados e organizados por tamanho, cor e limpeza. Baguncei o santuário, cismei em entrar na cozinha.
Ela não tem prova, tampouco precisa, sobra imaginação na memória. Qualquer acidente é descuido de terceiros.
Caso realmente tivesse espatifado o pote, o resultado não seria diferente, anteciparia que sou distraído e mantenho a triste mania de segurar as coisas pela tampa.
- é claro que ela derrubou o pote porque segurou pela tampa mal fechada por ela mesma e não colocou em prática o que costumava me repetir -
Mas mãe não aconselha, manda. Sua isenção é uma façanha. É assim desde a infância. A maionese desandou nunca por sua distração, eu é que fiquei conversando. O gás acabava nunca pelo seu uso, é que suas crianças exageravam no banho.
Crueldade materna é conversar com o filho como se ele não existisse. É o emprego da terceira pessoa. Assombração da terceira pessoa. Um recurso mais eloqüente do que o sujeito indeterminado.
- Quem foi que comeu o bolo? Quem foi que sujou o sofá? Quem foi que não lavou a louça?
É tudo de modo indireto, oblíquo, como se você fosse um outro a delatar que foi você.
Eu pedia desculpa para minha mãe antes que ela terminasse de cobrar. Por hábito. Por medo. Talvez por preguiça. Por saber que ela vai criar o inferno até encontrar um bode, um cabrito, uma vaca, um cavalo expiatório. Não suportava sua investigação incansável pelo celeiro dos quartos.
Em toda família, há uma cobaia esperando a lista de chamada. Costuma ser o caçula, fui eu.
Minha mãe não entrou em terapia, não entende o que é terapia, ainda é do tempo do Serviço de Orientação Educacional.
Teve que criar, sozinha, os quatro filhos. O que significa que nada será mais grave do que isso - desnecessário contar sua versão dos fatos.
No momento em que é desmentida, põe o remedinho cardíaco debaixo da língua. Não dá para continuar, já estou abanando o jornal novamente arrependido.
Nem cumprimento a mãe com oi ou olá, já chego em sua casa com "desculpa, tudo bem?".
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 207
Fevereiro de 2011