MALDIÇÃO
Arte de Eduardo Nasi
Minha memória mudou.
Aos 20 anos, lembrava do nome e do rosto.
Aos 30 anos, lembrava do rosto.
Aos 40 anos, lembro que conheço, e só. Preciso de tempo, ajuda do Google e de pistas para desvendar o interlocutor.
Todo encontro é uma charada. Relaxo, encaro fundo o enigma, examino qual a entrada mais promissora do labirinto e tento achar uma saída educada antes de optar pela sinceridade mais grosseira: “Não me lembro, não sei quem você é!”.
Na última semana, tive o mais complicado desafio de evocação. Meu sudoku particular.
Caminhando pelo shopping Iguatemi, em Porto Alegre (RS), uma senhora de olhos azuis graúdos me parou pelo ombro:
— Ei, não lembra de mim?
Puxei o ioiô do passado, mas não vinha nenhuma linha. Nenhum fio de imagem. Nenhuma legenda para este rosto redondo e simpático.
— Desculpa, estou sobrecarregado de trabalho e não me lembro.
Ela lamentou:
— Que pena, aguardava ansiosamente o nosso reencontro.
Já raciocinava, aflito: “Será que namorei esta mulher? Transei com ela? Prometi meu coração? É caso de alguma bebedeira?”
Eu me via vestido de cafajeste, de cafetão do inconsciente.
Quando ela esclareceu:
— A gente foi colega no maternal, no Patinho Feio!
— Maternal?, quis esclarecer.
— Sim, dividíamos a mesma almofada na hora do sono.
Não acreditava que ela preservava os fatos, intactos, quando tínhamos cinco anos.
Naquela hora, eu me contentei pelos meus apagões, pelas falhas generosas de meu passado, pelos lapsos do perdão. Pressenti o quanto ela sofre pela nitidez do que viveu. Deve recordar de qualquer briga, com data e horário; de qualquer desaforo, com a ordem exata das palavras; de qualquer desentendimento, com o mal estar minucioso; de qualquer vingança, reproduzindo perfeitamente o tempo do choro.
Aquilo não era memória, mas maldição.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
17/9/2014