ME POUPE DOS DETALHES
Sei que meus pais transavam. Mas me poupe dos detalhes. Os detalhes traumatizam.
É um assunto que devemos conhecer superficialmente, manter a criança dentro de si desinformada. Enxergar sem querer é natural, abrir a porta e testemunhar aquele amontoado frenético de corpos também não faz mal, são casualidades da casa e podemos guardar as imagens em caixinhas fechadas no depósito do inconsciente. Ainda temos controle do lacre. A questão é a confissão, o desabafo sem pudor estraga a relação, não existe como se defender das palavras.
Não haverá melhoria da qualidade sexual descobrindo o que os pais faziam na cama, se eram coreógrafos do chuveiro ou usavam a poltrona ou aproveitavam o espelho do armário. Mudará o nosso jeito de habitar o espaço e desfrutar dos objetos sagrados da convivência. Aumentará o repertório do nosso bloqueio criativo. O risco é o surgimento da maldita cena em horas impróprias. O pior não é broxar, porém explicar para a coleguinha o motivo.
É a mesma relação com o motel. Se soubéssemos o que aconteceu antes de entrar, jamais pagaríamos o quarto.
A intimidade exarcebada com os pais não acrescenta em nada em cultura geral. O efeito é até castrador. Vai contaminar pontos erógenos da memória.
Minha mãe inventou de me revelar que dançava Bolero de Ravel nua. Eu gritei: - Para agora, não me interessa, não perguntei!
Não tenho ideia de onde o relato poderia desembocar. Ela ficou assustada, não tanto quanto eu. Os limites são importantes para preservar a doçura assexuada.
Graças a Deus que não era surubinha de leve, mas a simples menção da trilha erótica foi suficiente para que procurasse novamente o terapeuta. Custará três meses de sessão para apagar parte dos ouvidos. Não consigo mais ouvir essa música. Nunca mais na vida.
Publicado em O Globo em 07/02/2018