MEU ANJO DA GUARDA,
Arte de Marc Chagall
vejo muitos pais reclamando do aumento de violência e de sua preocupação com a segurança dos filhos.
Sou também pai, respeito o medo e igualmente sofro em segredo – me encaixo naquele caso paranoico que só dorme quando todos estão em casa.
Mas eu e você temos noção de que a violência não era menor na minha adolescência, apesar dos protestos da nostalgia, apesar do charme de puxar o otimismo a favor do meu tempo.
Eu não esqueci o quanto você me salvou. Poderia ter morrido tantas vezes. E escapei sempre por um triz, por um golpe de suas asas, pelo seu cuidado telepático, pela sua generosidade discreta.
Você recorda, anjo, dos meus 18 anos? Óbvio que sim, minha memória é seu trauma.
Viajava de carro sem cinto. Uma simples colisão e não existiria mais. Saltaria em direção ao vidro. A gente bebia depois da festa e dirigia. Não havia campanha, fiscalização, blitz. Como que nunca aconteceu nada, como?
Sou seu milagre. Sua hora extra. Seu sonambulismo.
Ou quando atravessava a cidade a pé e entrava de penetra em qualquer festa que encontrasse pelo caminho, recorda? Adormecia em paradeiros desconhecidos. E não tinha celular ou telefone para pedir ajuda.
Já andei de Assunção a Petrópolis, sozinho, de madrugada, alheio a assaltos e ameaças. Já fugi correndo de turmas de canivetes e chacos.
Balada sim, balada não, armava-se um bolo em que os socos surgiam do nada e os colegas se defendiam com garrafas quebradas. Cortei a minha cabeça numa luta, o que rendeu quatro pontos. Quase foi fatal.
E o amor totalmente desprevenido? Ai, anjo da guarda, raros usavam camisinha com as namoradas na minha época. Mergulhei numa década inconsequente e saí ileso.
Gerei o dobro de trabalho para seus voos e vigílias, né? E as drogas que circulavam entre os conhecidos, o lança-perfume que vinha de Rio Grande? E os comas alcoólicos? Não foi uma vez que desmaiei na calçada do Bom Fim. Apaguei uma noite no Parque da Redenção, acordei com gritos de um brigadiano: “Vamos circular!”.
Gerei o dobro de trabalho para seus voos e vigílias, né? E as drogas que circulavam entre os conhecidos, o lança-perfume que vinha de Rio Grande? E os comas alcoólicos? Não foi uma vez que desmaiei na calçada do Bom Fim. Apaguei uma noite no Parque da Redenção, acordei com gritos de um brigadiano: “Vamos circular!”.
Os adolescentes torravam mesada em bebida e se vestiam como mendigos, com calças rasgadas e camisetas para fora.
Meu fígado não tinha rótulo. Superei conhaque de pior espécie, vinho de garrafão de procedência duvidosa, cigarros de filtro laranja.
Pegava carona na BR-116 (considerava um absurdo gastar com ônibus) e não deparei com nenhum assassino.
Incrível que esteja aqui para agradecê-lo. Se minha mãe soubesse o que passei, arrumava um castigo retroativo.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 8/05/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1763