MEU CORAÇÃO EM TUAS MÃOS
Arte de Fatturi
– Escute meu coração! – ela me pediu.
Achei bobagem. Concluí que era coisa de criança, que adultos não deviam perder tempo ouvindo o coração.
Lembrava uma infantilidade, uma doçura extravagante.
Apesar de minha recusa, ela colocou minha palma esquerda sobre seu peito.
Fingi interesse até que a sequência virou música.
Fazia muito que não ouvia o coração com as mãos.
A mão é o ouvido perfeito.
A mão é uma concha natural; o oceano nos dedos.
Naquela hora, eu capturei o animal acelerado, seu silêncio enervado, seu desejo correndo para todas as veias da boca.
Espantei-me com a banalidade, a redescoberta do óbvio, como se estivesse aprendendo a amarrar os cadarços depois de velho.
Eu entendia o que ela estava sentindo melhor do que se falasse. Eu via que ela era real, e que ela era possível.
As palavras foram se tornando palpáveis. As frases cresciam em sentido. É como um coro que desmancha a solidão do pensamento.
Eu me apavorei com o meu desconhecimento do gesto. Por que não cumprimento as pessoas escutando seu coração?
Por que abandonei o hábito de pequeno? Por que reservei a mecânica ao médico?
Por que não me permitia ser despudoradamente emocional?
Ouvir o coração é como acompanhar os passos num piso de madeira. A gente identifica o familiar avançando pela casa, somos capazes de adivinhar o cômodo em que se encontra.
Ouvir o coração é como ouvir um órgão numa igreja, não um piano.
Há uma diferença de fundo. Os tubos de metal e de madeira ressoam como um segundo sino, em caixas de cinco andares.
Ecoa um planger épico, inevitável. O corpo já treme ao andar.
O coração é mesmo um altar, mas quem ainda escuta?
Ouve-se o batimento da criança no ventre, os pais se emocionam com os primeiros sinais de vida de seus filhos, mas nos desacostumamos com o próprio ritmo. Ninguém nos inspira ou exige sua consulta.
Esquecemos de conferir o beijo, o abraço e o toque registrados lá, na linha cardíaca.
Com o coração dela em minhas mãos, compreendi qual o nosso medo. Quem escuta o coração não machuca o outro. Será responsável pela fraqueza. Sofrerá esperando o próximo suspiro do som. Estará consciente do intervalo de cada batida. Tem noção do que é ferir, e como dói ser sozinho.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 1º/09/2013 Edição N° 17540