“MEU RACIOCÍNIO É TORTO”
Foto de Renata Stoduto
O único limite das crônicas de Carpinejar é o literário: nada de clichês
Uma das coisas que um cronista pode almejar é mostrar ao leitor uma forma diferente de ver um fato sabido ou corriqueiro. É oferecer uma nova perspectiva. Fabrício Carpinejar faz isso com uma desenvoltura embasbacante. Veja Mulher Perdigueira, compilação de 125 crônicas que lança agora, um ano depois de vencer o Prêmio Jabuti da categoria com o livro Canalha! A quantidade de sacadas que permeia seus textos é um desafio para o leitor.
Nas primeiras, você sente o impulso de copiar o texto e guardar no bolso da camisa. Na décima ideia genial, percebe que não passou das primeiras páginas e conclui que é mais fácil carregar o livro todo debaixo do braço porque os papeizinhos não dariam conta de tudo que se quer anotar.
Carpinejar está com 37 anos e 19 livros. Jornalista e poeta, escreve também para revista (Crescer), jornal (Zero Hora, por um tempo), site (Vida Breve), blog e twitter. Mesmo com um volume impressionante de trabalho, é constante e, de modo paradoxal, imprevisível. Como as estações do ano. O inverno sempre chega, mas pontuado por dias inesperadamente quentes.
Na entrevista a seguir, ele conta para que serve uma crônica e diz que prefere ser romântico a “sofrer sozinho e não ter ninguém para descrever o próprio sofrimento”.
Uma boa crônica parece sempre ser íntima na medida certa. O cronista se expõe o suficiente para deixar o leitor entrever o homem além do escritor. Essa é uma das coisas mais marcantes nas suas crônicas: a intimidade que consegue criar. Ela é calculada?
CARPINEJAR - Sem intimidade, não é crônica. Quem quiser esconder suas manias e gostos e ser impessoal, deve escolher o ensaio. Todo escritor começa escrevendo para se proteger, depois seu maior trabalho é escrever para destruir suas defesas.
Crônica é fraqueza, conversa, essas miudezas que decidem nosso temperamento. Não há medida certa, sei que posso desagradar meus pais, namorada, filhos, que não vão tolerar que conte certas indiscrições. Mas não escrevo para ter medo, escrevo porque o medo não é maior do que a minha vontade de me aceitar. Existe uma censura familiar que não permite a simplicidade. Meus amigos sabem que serão difamados – só faço biografia não-autorizada.
Há um limite para o que está disposto a escancarar nas suas crônicas ou qualquer experiência pode servir de ponto de partida para um texto?
CARPINEJAR - O limite é literário: não aceitar o clichê, desconfiar das aparências, despertar sutilezas, dar uma segunda chance para a rotina.
Pode ser um furinho na camisa de uma mulher. Pode ser meu hábito de largar a xícara de café no parapeito da varanda, como balde para a chuva. É compreender que um olhar é futuramente nostálgico, estou comparando o que fui com o que sou. Meu passado pode ser modificado em qualquer instante. O cronista não recebe visitas, ele visita sua própria vida.
Falam que um dos fantasmas a assombrar o cronista é a falta de assunto, mas esse não parece ser um problema para você. Ou é?
CARPINEJAR - Falta de assunto é para quem deixou de viver para escrever. Não me desligo. Meu raciocínio é torto, flutuante, troço das minhas aspirações, espio as contradições, tento investigar como surgiu tal atitude. Não hostilizo a estranheza, duvido do rosto para enxergar com as mãos.
Não suporto crônicas que se desculpam pela ausência de inspiração. A literatura não termina em mim. Sou tão narcisista que tomo os problemas dos outros como se fossem meus.
Quais são as principais qualidades de uma crônica?
CARPINEJAR - Autocrítica e humor. O humor derruba a desconfiança para a poesia entrar. O drama faz com que as pessoas se fechem e sejam avarentas com suas emoções. A piada humaniza. O riso é tão-somente um vento chorando.
E o pior defeito?
CARPINEJAR - Arrogância. Cronista que não debocha de si será moralista. O mesmo ocorre nas discussões de relacionamento, as brigas prosperam porque nos levamos a sério demais e desejamos no fundo educar nossa companhia.
Existe algum cronista que admira e lê com frequência?
CARPINEJAR - Rubem Braga foi o maior dentro de um gênero menor, a ponto de fazê-lo maior.
Para que serve uma crônica?
CARPINEJAR - Para lembrar que a chaleira está fervendo.
Pelos textos, você parece um romântico irrecuperável.
CARPINEJAR - Sou um romântico que se atualiza e se recupera a cada gafe. Wando não era romântico, só pedia a calcinha. Quem é romântico pede a lingerie completa. Pede também o sutiã. Não sei viver ímpar. Conto os pássaros da migração para ver se estão voando em par. Protejo minha ilusão com toda maldade. Casamento é tão delicioso, depender é tão delicioso, quero uma mulher que sempre complete minhas lembranças, que me ajude a lembrar de mim. Não confio na memória, confio no amor. Se vale a pena, nunca fiz essa pergunta. Pior é sofrer sozinho e não ter ninguém para descrever o próprio sofrimento.
Você escreve sobre relações amorosas, pais, filhos, separação e a lista é longa. Existe algum tema em que se sinta mais à vontade? Ou trabalha com fases?
CARPINEJAR - Acho que é por necessidade mesmo. Eu me alterno. Largo o tema antes de ficar embriagado. A pior coisa é transformar a embriaguez em porre. Por exemplo, não consigo mais tomar saquê desde que passei da conta numa noite. Não suporto nem o cheiro. Gosto da saudade para poder voltar.
Como descobre os temas que fazem a sua cabeça?
CARPINEJAR - Quando não consigo pensar outra coisa: a crônica interrompe o trânsito das ideias. Transforma a rua em feira de fruta.
Serviço
Mulher Perdigueira, de Carpinejar. Bertrand Brasil, 336 págs., R$ 39
Publicado no jornal Gazeta do Povo, capa do Caderno G
Curitiba (PR), 24/06/2010