Blog do Carpinejar

MEUS OLHOS SUJOS

Arte de Francis Picabia

Ela sempre reclamou que eu não sabia tirar as remelas quando despertava.

Eu era capaz de passar o dia, mesmo tomando banho, mesmo lavando o rosto, com os ciscos nos cantos.

Quarenta e dois anos e os olhos sujos do sono, os olhos imundos do sonho.

Não entendia como eu não tinha paciência para esfregar os dedos nas pontas e remover o que não dependia de esforço.

Permanecia com o rosto desobediente, aparvalhado, de menino acordando às pressas para a escola. Será que ninguém me ensinou? Será que não consegui aprender?

Não raspava os pratos na mesa, assim como não raspava o fundo dos olhos. Este era eu.

Quando nos separamos, eu me arrependi do que não insisti em ouvir para entender.

Foi quando escutei o seu choro na sala.

O choro derrotado de quem tentou salvar de tudo que é jeito a relação, e nada mais mudaria minhas certezas.

Ela não chorava como uma mulher, não chorava como uma adulta, não chorava como já tinha visto, apesar de fazê-la infeliz várias outras vezes.

Ela chorava como uma criança, um timbre infantil agonizando no fundo de sua voz madura. Era o choro que chorava, não alguém chorando.

Como se houvesse uma criança trancada no quarto das lágrimas, pedindo para sair, esmurrando a porta das faces.

Ela se dobrou numa almofada, as costas contraídas, envolvida no espaçar mínimo de grito e resmungo, característico de uma menina. Uma menina de luto. Uma menina cansada do luto.

Ela não uivava como um animal encurralado, não gemia como uma desiludida, não chorava cantando como a angústia pede, não forçava a passagem da correnteza com o soluço, não exagerava na cena.

Natural, espontânea, desafinada, com sua pureza renascendo do sofrimento.

Ela era uma menina desesperada, uma menina repentinamente órfã, uma menina correndo mais rápido do que o pranto.

Seu tom plangente doía em meus ouvidos, perturbava, como arranhões no vidro com as unhas.

Num sacrifício desmedido, ela me oferecia sua infância. A vulnerabilidade total de seu corpo, a grandeza de sua pequeneza. Entregava seu medo de dormir no escuro, de ficar sozinha de novo, de não ser aceita. A injustiça do mundo que uma criança, desde cedo, pressente com toda a sinceridade.

Não me contive, e chorei junto.

Foi seu gesto de adeus. Ela retrocedeu no tempo de sua dor para se tornar uma menina e amar o menino que fui.

As lágrimas levaram minhas remelas.

Enfim, poderia ser adulto. Meus olhos hoje estão limpos e, em compensação, muito mais amargos.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 18/11/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17991

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