Blog do Carpinejar

MEUS PÉS NÃO SÃO ESCRAVOS



Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Pode me prender os braços, algemar as mãos, que não me incomodo, inclusive participo da fantasia. Mas não prenda as minhas pernas que viro bicho em jaula, louco em hospício.

Alguns dirão que são traumas de vidas passadas. Acho que é problema adquirido nesta encarnação mesmo. Talvez seja uma vingança ao grilhão das botas ortopédicas da infância. Fui um pássaro preso pela coleira dos pés logo quando aprendia a voar na escola.

Tenho uma hipersensibilidade nos dedos. Meias apertadas são camisas de força, tampouco cultivo paciência para amaciar sapatos duros.

Eu me angustio quando não existe folga para movimentar os pés. O peso de uma coberta no inverno já me perturba. Vejo-me enterrado vivo, ajustado no caixão. Dou pontapé, esperneio, grito, quebro a forma imaginária, o quadrado invisível do pesadelo.

A cadeira do carro e a poltrona do avião com pouquíssimo espaço me põem nervoso. Começo a ofender mentalmente quem está à frente.

Reagi muito mal a uma brincadeira dos filhos na praia. Quando eles cobriram todo o meu corpo de areia enquanto cochilava debaixo do guarda-sol. Eu gritei tanto com as minhas crianças que o mar se envergonhou de fazer barulho com as ondas.

Gostaria de ser menos tenso com os pés. Mas eles são livres e selvagens, pensam absolutamente sozinhos e seguem os caminhos sem me perguntar aonde desejo ir.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
07.09.2016

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