MINHA CIDADE SÃO AS PESSOAS
Arte de Peter Blake
O que faz gostar de uma cidade são as pessoas. A amizade é o ponto turístico que resiste ao tempo.
Minha vontade de conhecer mais as praças, os bares e restaurantes depende de alguém emocionado com sua rotina.
Lugarejos ficam atraentes com o entusiasmo de seus moradores. Nem requer grandes monumentos de Antonio Caringi, façanhas arquitetônicas de Álvaro Siza, desenhos de Oscar Niemeyer, paisagens de Burle Marx, mas o cuidado com as singelezas maravilhosas de seu bairro.
O que me seduz é como o morador desenrola o mapa discreto do seu dia a dia. É quando valoriza as quadras de seu mundo, e tem interesse em mostrar onde é o minimercado em que compra suas urgências, a cafeteria que cura sua ressaca, a floricultura que devolve sua esperança no amor.
O arrebatamento surge mais pela ternura do embrulho do que pelo presente. Papel dobrado com fita reflete o dobro de confiança.
A generosidade torna qualquer local agradável, e repõe a gana de voltar. Carisma de garçons salva restaurantes. Simpatia de manicures salva salões. Paciência de atendentes salva lojas.
Não há maior educação do que a alegria.
Sou influenciável pelos personagens comuns que não se esgotam em acordar cedo e falar bem de seus percursos. Fogem do elogio da lamúria. Retiram milagres das repetições.
Os amigos formam minha cidade. As ruas que passo mereceriam nomes das pessoas que amo. Deveria mudar as placas dos logradouros: nada de políticos e celebridades, mas quem é famoso secretamente em meu silêncio.
Moraria na Rua Cínthya Verri, médica e terapeuta, paralela às ruas Mariana Carpinejar e Vicente Carpinejar, que eu não sei ainda o que eles serão, mas já são tudo como filhos. Os pais, Maria Carpi e Carlos Nejar, teriam direito a duas avenidas do tamanho da Assis Brasil e Ipiranga.
Batizaria o viaduto que me leva ao centro de Mário e Diana Corso, casal de confidentes. Seria Diana para quem chega e Mário para quem parte ao interior do Estado.
O mercado público ganharia a graça de Luiz Ruffato, irmão de prosa que cataloga frases de efeito. Chamaria o teatro de Cíntia Moscovich, a casa noturna de Renato Godá, o shopping de Eduardo Nasi, a Biblioteca Pública de Rosemary Alves, a orquestra de Francesca Romani, a Agência de Correios de Fernanda Seelig. Honraria o Jardim Botânico com um professor fundamental, Luís Augusto Fischer, que me alcançou uma lição preciosa: somos mais inteligentes criando novas dúvidas do que repetindo certezas. Convocaria um colorado, Paulo Scott, para assumir a posteridade do estádio.
Desejaria indicar o crítico Daniel Piza para ser minha rodoviária, espaço em que ocorrem as mais pungentes despedidas. Mas ele morreu na última sexta, aos 41 anos, de AVC. Não dá mais.
Amigo vivo é rua, amigo morto é estrela.
Daniel Piza vai piscar conselhos para mim toda noite.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 3/1/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 16935