Blog do Carpinejar

MORTADELA

Arte de Eduardo Nasi


O armazém da esquina foi a minha universidade do olhar.

Quando a mãe pedia para comprar algo, eu demorava o dobro de tempo pra voltar, atraído pelos efeitos especiais da simplicidade: a mão mecânica agarrando os produtos no alto, os baleiros girando, o imenso refrigerador que lembrava um cofre.

Os barulhos do armazém do Seu Alencar cadenciaram a minha respiração. Lá prendia o grito, soltava a voz.

Aquele espaço tinha a grandeza de um museu minúsculo, infantil. Não existia banco e cadeira, sentava nos sacos de grãos. Às vezes dava licença para algum freguês pegar uma pá de feijão.

O prédio amarelo e descascado regrava os meus horários. Tanto que sabia o momento de ir para escola quando ele levantava a pesada porta de ferro, vinha a ser o meu alarme de amanhecer. Tanto que sabia o momento de jantar quando ele baixava a pesada porta de ferro: vinha a ser o meu despertador de estrelas.

Encontrava o bairro inteiro no saguão de secos e molhados. Conviviam com harmonia os malucos e os mais certos, os mais tortos e os mais retos. Não havia melhor ou pior sujeito, havia histórias de vida.

Na caderneta, reinava o sobrenome da família. No balcão, o apelido é que mandava.

O que me encantava era testemunhar a negociação dos pedreiros com Seu Alencar, tentando ampliar a compra pelo menor preço.

Um enviado, sempre diferente, buscava o lanche da turma inteira envolvida em levantar uma construção em minha rua.

O cardápio não mudava. Consistia em pão francês com mortadela, acompanhado de Coca-cola litro.

Mas não cinco ou seis pães como de minha família, e sim sessenta para cima. Uma fortuna para a minha cabeça de bolita.

Sacos e sacos de pães, quilos e quilos de mortadela. Um assalto à mão desarmada na padaria.

Seu Alencar ficava horas fatiando o produto na máquina. Quando não tinha ninguém para ajudar, pedia o meu auxílio.

Eu retirava a embalagem e alcançava os blocos de presunto. Ele agradecia, e ia laminando um a um, com paciência artesanal, procurando manter a espessura igual entre as folhas de carne.

Uma vez por semana faço questão de comer pão e mortadela em homenagem ao passado de menino.  A cada ano, ergo um novo andar no edifício da memória sem jamais esquecer os meus alicerces.

Toda esquina merecia um armazém, com fiado em ordem alfabética, onde as pessoas ainda confiassem em seus vizinhos.







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 26/08/2015

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