MOTIM DOS OBJETOS
Arte de Eduardo Nasi
Não sei se você notou. É amar alguém de verdade que os objetos impõem súbita greve de funcionamento.
O poltergeist sempre coincide com início do romance.
Com medo de perder a colocação no lar e o posto de trabalho, o mobiliário faz motim. Receia o gulag do porão e a garagem, teme eventual troca por aparelhos de última geração.
Não há namoro que não mexa com os ânimos dos pertences, incertos daquilo que parte ou fica com a união. Sofrem crises de pânico e esgotamento das baterias, controlam os caminhões de frete pela rua.
Copos pulam do viaduto das prateleiras, pratos voam com a asa-delta dos talheres, é um vendaval de cacos e fragmentos.
No começo do relacionamento, os objetos estragam num único dia, em sequência mórbida. Eles se sentem abandonados e se revoltam. Têm inacreditável ciúme da felicidade do dono. Pressentem o exílio e transformam os aposentos em templo de exorcista: faíscas, pequenos estouros, infiltrações.
Coisas queridas e prediletas se matam para chamar a atenção. É um suicídio coletivo, mobilização alinhada de seita.
Meu relógio parou desde que oficializei o namoro com Juliana. Já troquei cinco vezes a lâmpada do quarto em menos de duas semanas. O DVD baqueou com falhas de contato.
No fim do dia, acumulo inúmeras baixas. O aspirador de pó e a vassoura são enfermeiras de plantão, e vivem recolhendo os ossos de porcelana pelo caminho.
Vejo que a residência me testa seriamente, porém não me irrito. Pago os consertos com inusitado contentamento.
A máquina de lavar rompeu suas correias e estragou seu cano. Providencio arrumação, sem problemas, estou apaixonado.
O carro encalhou em plena descida de ladeira. Quebrou a embreagem. Esperei o guincho feliz, sem problemas, estou apaixonado.
O micro-ondas queimou. Comprei outro, sem problemas, estou apaixonado.
O ar-condicionado não aquece. Decido ajustá-lo, sem problemas, estou apaixonado.
As geringonças e tralhas buscam me constranger, interessadas em demonstrar sua força e poder. Mas estou apaixonado, e não me importo.
Meu reiki é abrir as janelas e abençoar os corredores com suspiros.
Fecho o corpo para a tragédia. Fecho o corpo para a inveja. Fecho o corpo para a casualidade.
A culpa não vai me estragar.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira