Blog do Carpinejar

MUDANDO DE ARES

Arte de Cínthya Verri


Quando sou levado para palestras, nunca peço para que seja ligado o ar-condicionado. Temo a pergunta e vou abrindo a janela.

Não é o medo de ficar gripado ou estragar a voz. É um receio mais poderoso, intuitivo, é descobrir a personalidade do motorista.

Não partilho da visão de que o cão revela a cara do seu dono e que ambos se parecem com a convivência. Meu tio Paulo era um buldogue e cuidava de um linguicinha.

Acalento a convicção de que o caráter do homem está no ar-condicionado. Na ventilação. Já entrei em carro que o ar tinha bafo de cervejeiro, o hálito de um engradado, denunciava que o proprietário surgiu de uma paixão proibida entre o gambá e a esponja. Para reforçar o tipo, o motorista ainda escutava pagode. Às vezes, não entendia bem o que estava acontecendo, se o cheiro vinha do rádio ou o pagode vinha do ar.

Carro de locadora é também um inferno, impregnado de pinho sol. O desinfetante é absolutamente forte. Os olhos ardem. Impraticável dirigir; é para nadar numa privada. Nem descarto a hipótese de que houve um homicídio no porta-malas e abafam o passado.

Aconselho também a não tomar táxi parado de madrugada. Controlei a ânsia de vômito, o aparelho não refrigerava, emitia gases tóxicos. Sei lá se o condutor estava dormindo e soltou violentos puns. Sem sair do lugar, fui transportado para o banheiro da rodoviária. Na saída, faltou coragem para pagar a corrida com um rolo de papel higiênico.

Carro de cachorreiro é igualmente brabo de engolir: cachorro molhado é um elogio, é cachorro afogado. Os bancos são escorregadios, com pelo e uma umidade invencível de pântano. O cinto de segurança será a menor das coleiras.

Ar de fumante tem atmosfera de presídio, ar de viajante é de tempestade de areia, ar de infiel exala as fragrâncias suspeitas de sachê, ar de místico é de incenso, ar de pintor de paredes é de ferrugem, ar de traído é de pelego, ar de empresário é de lavanderia, ar de velha é de crochê e blush, ar de pedreiro é de desodorante Avanço, ar de terapeuta é de tangerina e banana, ar de médico é de hortelã, ar de mãe recente é de queijo misturado a Shampoo Johnson, ar de advogado é de livraria, ar de suicida é de porão, ar de tarado é de bala de goma.

Como passageiro, não posso trocar os filtros, mas filtrar as caronas.



Crônica publicada no site Vida Breve

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