"NA PAIXÃO, TODO MUNDO MENTE E JURA QUE É MODERNO"
Paula Dumecolaboração para a Livraria da Folha
"Saúde emocional é explodir na hora certa do que guardar rancor", defende o escritor
Possessiva, escandalosa, preocupada e apaixonante. A mulher que ninguém quer, à primeira vista, é a que o escritor Fabrício Carpinejar deseja. "Mulher Perdigueira", publicado no final de maio pela Bertrand Brasil, descreve as contradições da mulher que dá título ao volume.
Em 125 crônicas, o autor cria sentido para o que não se vê, não tem cor, não pesa mas sentimos o desequilíbrio, não tem forma mas muda, não nomeamos mas existe. A mulher perdigueira reconhece todos esses sintomas humanos e consegue transpor para a realidade sua angústia, mesmo que seja em forma de perturbações para seu companheiro.
Em entrevista à Livraria da Folha, Carpinejar --melhor cronista do tradicional prêmio Jabuti no ano passado-- poupou os desequilíbrios da mulher perdigueira ao afirmar que louco é quem não demonstra sua necessidade. "Todos comentam os efeitos colaterais da passionalidade, mas esquecem o lado positivo: a ternura, a cumplicidade, o amparo, a atração química e a amizade indestrutível", disse.
O escritor delineou as principais características das mulheres consideradas "perdigueiras". Pontuou que o avesso desse tipo feminino é a que se utiliza do "coitadismo", chamada de "mulher-vítima". Carpinejar comentou também sobre os empecilhos nos relacionamentos, como o fingimento do controle e da sobriedade. "Tudo conversa fiada, cartão de visita."
Leia a íntegra da entrevista e descubra se você ou sua mulher são perdigueiros por instinto ou por opção.
Livraria da Folha - Como surgiu a expressão "mulher perdigueira" e por que você decidiu compor um volume sobre o tema?
Fabrício Carpinejar - Pensei em combater o estigma da mulher ciumenta, que parece uma louca varrida. Louco é quem não demonstra sua necessidade. Perdigueira realmente se importa com seu namorado ou marido. Exagera, mas se importa. Todos comentam os efeitos colaterais da passionalidade, mas esquecem o lado positivo: a ternura, a cumplicidade, o amparo, a atração química e a amizade indestrutível.
Mulher Perdigueira não finge equilíbrio, pois entende que o amor é puro desequilíbrio. É discutir, incomodar, provocar e apenas encontrar a paz com os pés enlaçados debaixo dos lençóis. Hoje existe uma castração do temperamento, fingimos controle, exalamos sobriedade. Tudo conversa fiada, cartão de visita. Saúde emocional é explodir na hora certa do que guardar rancor. Tudo o que não foi dito no momento terá depois o juro da desconfiança e os casais terminam falindo pelas incertezas polidas. Temos que tomar cuidado para não confundir silêncio com omissão. Parece um absurdo fazer algo pelo outro, soa como burrice, como renúncia. Vejo como cuidado. A dominação --saber quem dá mais ou quem dá menos-- é inútil para os dois que já se entregaram completamente a um relacionamento.
Livraria da Folha - Xico Sá segue o modelo clássico literário para classificar as mulheres ("balzaquianas", por exemplo). O termo "mulher perdigueira" não sugere que esse tipo de mulher é como uma raça?
Carpinejar - Não é uma raça, é uma predisposição que atinge tanto o homem como a mulher. Há homens que passam o vírus do ciúme para mulheres até então independentes. Não há sofrimento unilateral, desculpe. Quem diz que está imune mente. É muito fácil dizer que isso nunca vai me acontecer quando não se ama.
Livraria da Folha - Qual seria a mulher contrária à perdigueira? Descreva-a.
Carpinejar - A mulher-vítima. Que diz ao filho que deixou de viver para cuidá-lo, que diz ao marido que deixou seus sonhos para casar. É aquela que não assume nenhuma responsabilidade sobre suas escolhas. Vive no passado, imersa no coitadismo. Bem diferente da perdigueira, que está enraizada no presente e na demonstração de suas vontades.
Livraria da Folha - Quanto tempo demorou entre composição e edição da obra?
Carpinejar - Três anos. É o tempo que leva um livro desse porte para se formar e se agrupar como uma corrente marinha. Como os textos são recortes autônomos, montar a unidade requer uma costura invisível, eliminar os ecos, os temas recorrentes, procurar desdobramentos e a limpidez da voz. Como se as crônicas fossem escritas num só dia.
Livraria da Folha - São 125 crônicas que retratam, de certa forma, o etéreo, aquilo que não registramos mas existe.
Carpinejar - Um exemplo é nossa dificuldade para fazer perguntas diretas, didáticas, que reduziriam qualquer discussão. Começamos a maior parte das brigas porque não sabemos como perguntar de uma desconfiança. Daí, armarmos todo um estado de pânico para realizar as indagações mais absurdas. Ao tentar esconder a doença criamos outras bem piores. Se o namorado encontra uma amiga antiga e solta frases desconexas, em vez da mulher fulminar "É uma ex?", ela se enche de rodeios e questiona quem é ela, onde se conheceram, comenta que a situação foi estranha e que ele está diferente. Entende? O atalho desconhecido é muito mais longo do que os caminhos conhecidos.
Livraria da Folha - No livro, você defende a "caça" das mulheres perdigueiras. Já teve alguma dessas em seu encalço?
Carpinejar - O que posso assegurar é que adoro a coragem da opinião, a franqueza do hábito. Os mornos podem ficar com a posse, a possessão é para quem entra no inferno ou no paraíso. O universo feminino é melhor do que a asma: me tira o fôlego.
Livraria da Folha - Como o homem pode reconhecer uma perdigueira no primeiro encontro? Quais pistas "dedam" a pretendente?
Carpinejar - Não existe mulher perdigueira no primeiro encontro. Na paixão, todo mundo mente e jura que é moderno. Ela surgirá na convivência, na retratação da personalidade com a chegada do amor. Forneço dicas para identificação:
- Usará apenas "meu homem", "meu namorado" ou "meu marido", altamente possessiva;
- Não espera para discutir em casa. Parte do princípio terapêutico de que a raiva depende da espontaneidade do momento;
- Acredita que toda gafe poderá ser corrigida com sexo de noite;
- Pergunta de novo aonde ele vai, somente para confirmar os dados;
- Aparece de surpresa nos lugares avisados e afirma que é coincidência;
- Ao atender os amigos dele, puxa papo para garimpar histórias e informações privilegiadas;
- É uma leoa-de-chácara. Qualquer mulher que se aproxime mais melosa de seu companheiro, já chama de piranha ou vadia;
- Não pergunta quem ligou, pois considera uma atitude mal-educada, é independente, mexe direto no celular para verificar o número;
- Disca para números suspeitos como se fosse pesquisadora do IBGE, além de apagar nomes femininos do catálogo de endereços;
- É a provedora do Orkut dele, controlando os scraps e os recados;
- Parte da tese de que não importam os meios, mas o fim;
- Esquece o que fez de errado com repentinas declarações de afeto;
- Cheira a camisa e alega que é capricho, somente para confirmar se ele ainda põe o perfume que comprou;
- Tem um ciúme preventivo. Avisa o que ele pode aprontar antes de qualquer coisa e antecipa o julgamento;
- Investiga sua caixa de mensagens e ainda o culpa por deixar tudo ligado e à mostra;
- Decide mostrar sua lingerie nova justo quando ele tem algum compromisso;
- Pede desculpa com a mesma facilidade que xinga;
- Propõe constantes testes, em especial surpresas que terá que corresponder à altura. Ai se ele se atrasar para algo, mesmo não desconhecendo;
- Cria aniversário de tudo, do primeiro beijo, da primeira transa, do primeiro presente, do primeiro jantar, do primeiro cinema;
- É uma agência de notícias: manda mais de dez torpedos ao dia e conta suas novidades a cada meia hora;
- Instala a discussão perto de dormir, aproveitando o cansaço, e depois se faz de vítima, repetindo as ofensas recebidas;
- Quando ele chega tarde, finge estar dormindo;
- Na separação, amaldiçoa com "Nunca mais será feliz" ou "Ficará broxa com outra mulher".
Livraria da Folha - Há "homem perdigueiro"?
Carpinejar - Está falando com um. Ou acha que faço propaganda enganosa?
Publicado na Livraria da Folha, 5/6/2010