Blog do Carpinejar

NÃO CHEGO AOS PÉS DELA

Arte de Edward Hopper

O pé de Katy é tão lindo que eu poderia colocar a aliança em seu dedo.

Deveria ter uma aliança para a mão e outra para seu pé.

Um desperdício de beleza não desposar seus pés também. Não andar de pés dados no Parque da Redenção, na Usina do Gasômetro.

Não é um pé simplesmente para a cama, mas é um pé de compromisso, feito para o altar.

Seu pé é perfeito, pequeno, os dedos simétricos, firmes, atraentes.

Não aquele pé que tem um dedão apontando para a rua enquanto os outros apontam para o mar.

Não aquele joanete imprevisível, neurótico, que confunde a direção do destino.

É um pé sem bicos de papagaio, que nunca morde, que jamais machuca. Um pé que não matará baratas, porque só serve para abrir espaço ao espanto dos pássaros. Os nervos conversam e se entendem, as veias estão tomando sol debaixo do guarda-sol da pele e nem aparecem.

O homem se apaixona pelas mãos, mas somente casa depois de ver os pés.

Os pés são a âncora do casamento. Os pés são o voto de minerva. Os pés são o último conselho.

Não precisa ser podólatra para isso. Não sou de chupar os dedos do pé, lamber, me perder entre as frestas. Nenhuma taradice, tenho apenas uma admiração enamorada, normal entre os homens.

Deixa explicar. Seu pé tem as unhas pintadas em fileira indiana, é um buquê, uma procissão organizada de rosas a Iemanjá. Nada fora do lugar, nada torto e truncado.

Um pé que cria vontade de se embalar na rede, de levantar as pernas no impulso do balanço. Um pé que é melhor do que um lençol de 800 fios. Macio, sestroso.

Considero, inclusive, um crime que minha mulher pague a diferença entre pedicure e manicure, o preço merecia ser único, de mãos.

Ela, na verdade, tem quatro mãos, vive no ar, flutuando, levitando. Anda pelos ares, pelos ventos de meus olhos.

Quando ele roça meu pé, a sensação é que me beija – me beija na boca.

Meu grande problema é que Katy trabalha de Havaianas numa loja carioca. Não suporto a dor de cotovelo.

Sofro toda vez que ela sai de casa. Todos podem enxergar sua exuberância – não é justo.

Meu amor é cristão. Meu ciúme é muçulmano.

Além da aliança, deveria existir véu para os pés.



Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 20/10/2013 Edição N° 17589 

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