NÃO HÁ COMO IMAGINAR
Arte de Paula Rego
Um amigo virou alcoólatra.
Ele era alegre, falante, dirigia negócio promissor, morava em seu apartamento no Moinhos de Vento, viajava para Buenos Aires nas férias, adorava dançar nos sábados.
A última vez em que eu o vi foi em janeiro de 2012, num restaurante italiano da Cidade Baixa. Reencontrei-o há pouco, dentro de um carro, encolhido no banco de trás, com o olhar parado e morno, sendo conduzido para a terceira clínica de desintoxicação. Estranhei os cabelos loiros queimados nas pontas, ele que nunca descuidou de sua imagem.
Em um ano tomado pelo álcool, transformou-se num fiapo de gente: perdeu o endereço comercial, gastou o imóvel para quitar dívidas do vício, não tem capacidade de decidir nem o que vai comer.
Assim como retiramos o rótulo da garrafa de cerveja com a umidade, sua história desapareceu. A bebida sugou sua identidade, seu temperamento, sua memória, até torná-lo anônimo.
Não fiquei triste que ele não me reconheceu, fiquei triste que ele não se reconhecia mais. Sequelado excessivamente para poder reconstruir sua trajetória.
Se o estado deplorável do amigo me assustou, o que deve latejar nas veias de sua família: em seus irmãos, em seu pai, em sua mãe?
O que é ter um filho que se anulou, que morreu para o mundo, a um passo de se apagar a qualquer momento?
Não há como imaginar o sofrimento dos pais. Porque imaginar ainda não é passar a semana inteira levando o filho de um lado para o outro, de um hospital a outro, na baldeação ininterrupta de médicos.
Não há como. Porque eu disponho de tempo para imaginar, eles somente têm tempo para cuidar.
O pai, que jurava que a educação do seu filho estava resolvida (formado e com emprego), enxerga-se impelido a reiniciar a paternidade e caminhar com uma criança grande amarrada aos ombros.
Não há como imaginar o que é receber uma ligação de madrugada para retirar seu filho mergulhado no meio-fio de alguma ruela, onde apanhou ou caiu misteriosamente, lavar os ferimentos e atravessar a noite em claro, rezando para que Deus ofereça uma segunda chance e não o leve embora.
Não há como imaginar o próprio filho querendo matá-lo, possuído de raiva; querendo roubá-lo, possuído de ansiedade; querendo escapar porta afora, possuído de pânico.
Ele melhora um pouquinho, e logo piora de novo. Ele se regenera num mês, e afunda nos seguintes. Ele se acalma um instante, para explodir e bater em quem encontrar pela frente.
Não existe mais o luxo de um dia bom, mas somente dia menos ruim. As expectativas são renovadas para a certeza da frustração.
A família de meu amigo tem todos os motivos para desmoronar, porém permanece de pé. O casal de pais não se separou, os irmãos não se distanciaram, ninguém usa uma desculpa para não trabalhar, um pretexto para não seguir com a rotina. Choram no meio das tarefas, riem de puro alívio, dedicam-se a uma eterna fisioterapia emocional em torno de uma pessoa (as palavras reaprendendo a andar, os lábios reaprendendo a beijar, os braços reaprendendo a abraçar).
Apesar da convicção de que ele é irrecuperável, nenhum dos parentes desiste. Só conhece o amor verdadeiro quem teve uma esperança falsa.
Eles continuam, como continuam os que realmente acreditam em milagres.
Amar com a vida a favor já é complicado, não há como imaginar amar com a vida contra.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°