Blog do Carpinejar

NÃO SOU MAIS UM RAMAL

Arte de Marcel Duchamp


Comprei telefone fixo para diminuir a conta do celular. Um aparelho aristocrático, com gancho, disco e fio crespo. Preto lustrado, um sapato de baile.

A decisão veio de um pouco de nostalgia, um pouco de economia. A cada três meses sofro recaídas retrô. De vez em quando sou anos 70, outras vezes anos 80, algumas vezes anos 60, dificilmente me encontro em minha época.

Minha mãe é que apoiou a medida, jurou que estava amadurecendo, tomando juízo. Ela é uma senhora elegante de cabelos grisalhos que confia na lista telefônica mais do que no Google. Orgulha-se em conferir seu nome naquela letra de Bíblia. Ainda umedece os dedos no momento de virar as páginas e trata os vizinhos pelo sobrenome. Na minha infância, ficava brava quando dava o número residencial para um colega. Talvez hoje não tenha tanta importância oferecer o telefone particular, mas já teve o apelo de reverência, de senha bancária. Só se alcançava para quem merecia toda a confiança.

O caso é que recebi o extrato depois de um mês: R$ 10. Na certa, paguei o reles envio postal.

Não pense que foi resultado de oferta formidável, com 30 dias grátis para seduzir a namorada ou uma promoção durante os jogos da Copa. Eu simplesmente não consegui usar o aparelho. Mesmo quando estava em casa. Sua existência me revoltou como as fitas VHS. Isso que experimentei a época em que a dignidade profissional era medida pelo ramal próprio. Um ramal somente para si. Essencial quanto o cartão de visita.

Um ramal respondia a independência, traduzia reconhecimento profissional, significava uma mesa própria na repartição, com direito a três porta-retratos. Depois de um ramal, eu podia casar e ter filhos. Havia sempre uma telefonista para mediar as urgências e enganar os chatos.

Falava com eco de montanha:

– Quem é? Tudo bem, pode passar para meu ramal!

Sinto que extraviei a vocação de funcionário público. Perdi a paciência de raiz. A serenidade de árvore.

Não suporto olhar para um ponto fixo, que já estou chorando. Não há como sentar mais de 20 minutos, que já estou dormindo.

Tentei empregar o aparelho, realmente me esforcei para gastá-lo. No primeiro contato, animado com as fofocas, saí a passear pela sala. Toda a escrivaninha veio junto. Puxei o fio e arrebentei a tomada, causando um estrago na pintura.

Irrita-me o desperdício dos horários, o alcance limitado da ação. Parece que voltei a jogar caçador na escola, que estou preso num canil. Bem que o veterinário me avisou que vira-lata tem alergia à coleira.

Não sei mais ficar parado. A facilidade de falar estragou a beleza da imobilidade. A imaginação enfraquece o fôlego na quarta frase, e logo se apoia nos olhos.

Na hora de sentar, sobe uma angústia, uma sensação de atraso eterno, uma melancolia de desastres. Preciso controlar e-mails, arrumar o quarto, organizar os papéis, sei lá, aproveitar o tempo enquanto converso.

Minha voz não tem mais endereço. Virei um sem-teto no timbre. O celular me corrompeu.

Publicado no jornal Zero Hora, Edição N° 16363
Editoria Geral, P.2, Porto Alegre (RS), 11/06/2010

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