NÃO TIRE SEUS LINDOS SAPATOS
Arte de Richard Hamilton
É uma agressão exigir que a mulher tire os sapatos para entrar em sua casa.
Você pode ser oriental, budista, maníaco por limpeza, não peça.
Sei que é higiênico, livra a residência de sujeira e contaminações, e também é um modo de erradicar as energias negativas do vaivém da rua, e ainda de poupar o piso de madeira dos arranhões.
Mas não peça. É um crime estético obrigar a mulher a tirar o sapato.
Ela somente deve renunciar esse direito ao baixar a hospital. Em nenhum outro lugar. E no hospital, tanto faz o que calça, irá se desvencilhar da vaidade de qualquer jeito com a deprimente camisola aberta nas costas e aqueles detestáveis chinelos descartáveis.
Afora as emergências, é um vexame se despedir subitamente dos sapatos.
Em festa ou encontro com amigos, ela se verá altamente constrangida. Não se trata de vergonha dos pés ou do joanete, não é um recalque e problema psicológico, não é receio de chulé.
Ao tirar os calçados, ela desmancha sua roupa. Acaba com seu traje. Liquida com sua produção. Ela definiu a combinação inteira das peças a partir deles: a cor, o tecido, o humor. Toda mulher é uma cinderela adormecida, não pise em seus calos.
Obrigá-la a permanecer descalça é o equivalente a ordenar que ela fique nua. O sapato é tão íntimo quanto a lingerie. Escolhido com esmero para repercutir as virtudes do corpo.
Forçar sua dispensa é um estupro social. Sem o cobiçado par, a visitante não encontrará sentido e posição relaxante. O temperamento murcha, o tom sobre tom perde o brilho. Mais drástico que receber chuvarada, mais agressivo que estragar um zíper.
Se ela está com vestido negro curto e abdica das botas altas, trocará o clima de totalmente selvagem pelo desamparo de alma penada.
Para a mulher, até o sofrimento precisa ser ensaiado. Odeia ser pega desprevenida, desprovida de plano alternativo.
O acessório determina o estilo, nunca será um detalhe insignificante. Influencia, inclusive, seu penteado. Põe altura e equilibra o conjunto. Dois centímetros a menos podem destruir um figurino. Deixar de lado o salto no momento de reencontrar o ex é chamar a morte, é anular alguma chance de superioridade.
O homem dificilmente entenderá. Sem sapato, a meia-calça vai desfiar, não tem como andar. Ou, pior, a meia-calça com um furinho estratégico nos dedos acabará sendo revelada.
O sapato não faz parte do vestuário, está muito além disso, representa um fígado para a ala feminina, de transplante difícil e delicado.
Não ouse humilhá-la com normas e restrições.
A mulher ama mesmo um capacho.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17376