NOME HERMAFRODITA
Na escola, odiava quando os guris me chamavam de Fabrícia. Gritava, corria atrás do bando, aquilo me enervava, não tolerava que me colocassem no feminino. Não havia como me controlar. As brincadeiras mais ofensivas são as mais ridículas. Suportava qualquer apelido de filme de terror, como Leatherface, Freddy Krueger ou Jason. Mas Fabrícia me tirava do sério. Vinha o desejo de retirar uma serra elétrica da mochila ou portar um chapéu negro ou uma máscara branca para reaver a fama de horrível. Que fosse um monstro, mas viril. Sem dúvidas de gênero.
Era sortudo, mal sabia. Faço parte de um time definido. Truncada é a vida de quem apresenta nome hermafrodita. Um nome que serve para os dois lados. Não me causam compaixão pessoas como Bucetilde, Etelvina ou Himineu. Trato com o maior respeito. Todo nome que precisa ser soletrado já merecia receber o passaporte com a certidão de nascimento.
A denominação hermafrodita é que me abala. Nada sai conforme esperado, ainda mais longe do contato visual. Estou cantando o sujeito quando busco ser gentil com uma moça, estou ofendendo uma senhora quando procuro ser simples com um homem. É o crime insolúvel da língua portuguesa, enigma que nem o folclorista Câmara Cascudo e o linguista Antonio Houaiss conseguiram resolver juntos. Embarga a convivência, embaralha modos e preposições, destrói amizades na nascente.
O detentor de nome hermafrodita necessitaria ser precedido por Sr., Sra e Srta. Evitaria confusão. Porque os pais não facilitaram o desejo sexual. Numa mensagem eletrônica, me despedi do escritor Alcione com beijos. Pensava na cantora. O missivista rebateu a gracinha com secura: “Obrigado, mas pode se conter um pouco?”.
Atravessei inúmeros vexames ao longo da escrita e da voz. Perguntei a um Odair se ele era o terror das empregadas, levado pela imagem de Odair José, e o timbre afeminado respondeu que não era lésbica.
Troquei mensagens no msn com um Eurípedes. Lembrando o autor grego, brinquei que sua vida com a namorada deveria ser uma tragédia, e a Eurípedes perguntou se sempre era grosso no primeiro contato. Não houve um segundo papo para ser gentil.
Falei para um Merlin, motivado pela lenda do rei Arthur, que considerava seu batismo uma bruxaria, e a Merlin desapareceu como bruma. Assim foi com Alisson, Ariel, Donizete, Rosimar, Zezé...
Não dá para ser engraçadinho ou carinhoso com quem tem nome hermafrodita. Muito menos sério, que a conversa terminará sempre em constrangimento. Só tenho vontade de pedir desculpa.
Publicado no jornal Zero Hora
Interino de Luis Fernando Verissimo, p. 2, 14/10/2010
Porto Alegre (RS), Edição N° 16488