NOSSO PRECONCEITO COM O VEGETARIANISMO
Arte de Peter Blake
Não valorizamos os vegetarianos. Não reconhecemos os vegetarianos. Somos injustos com quem não come carne.
O estilo de vida é interpretado como uma deficiência, ainda mais no Rio Grande do Sul, onde imperam as churrascarias.
Ao conversar com um vegetariano, sempre quero convertê-lo. Ponho a batina. Fico moralista. Latinizo meu sotaque.
Reedito o embate ancestral entre o jesuíta e o índio. Ele precisa encontrar o Deus da Picanha. Não posso deixá-lo perecer longe do paraíso de um faisão temperado.
Preocupo-me com seu destino de pecador. Toca-me a vontade social de estender meus hábitos e dividir a conta no açougue.
Não comer carne é identificado como um trauma, algo de grave aconteceu para abdicar das delícias naturais. Ninguém abandonaria em sã consciência um filé selado e cheio de molho para passar o pão.
Talvez o sujeito guarde a lembrança de ovelha sendo descarnada na infância, e simplesmente sofra de nojo.
É olhar um vegetariano que desejo pagar terapia para ele. Sou tomado de um calor paternal, me dá esperanças de rifa.
Na verdade, sou como a maioria dos gaúchos. De mentalidade delirante e preconceituosa.
Desconfio da dieta. Confundo com teimosia, charme, que é insistir um pouco que o vegetariano abandona sua horta e desanda a chupar uma ripa da costela.
É impossível que seja feliz despeitando seu instinto primitivo, desrespeitando a tábua de salvação do espeto e dos amigos.
Nem posso discutir com um vegetariano, que meu impulso é trazê-lo para perto de uma churrasqueira.
Nem posso debater com um vegetariano, que meu impulso é comprar carvão e engradados de cerveja.
Por mais que acumule MBA, não assimilo a escolha madura e acertada, feita para melhorar a saúde e assegurar a longevidade. Avalio como um atentado ao prazer da mesa, uma renúncia carnal.
É totalmente louco de minha parte. Merecia ser internado numa fazenda hippie.
Enxergo o vegetariano como alguém que desistiu do sexo, que optou pela abstinência. Cometo gafes a torto e a direito. Pergunto, inclusive, quantos dias ele está “jejuando”.
É evidente minha descrença, a falta de lógica e de civilidade do juízo.
Tenho pena visceral, comparo o vegetariano a um prisioneiro eterno da Sexta-Feira da Paixão. Condenado a repetir esse dia de privação pelo resto dos dias. Sem à la minuta. Sem xis bacon.
Sou curioso com o vegetariano, como se ele portasse doença rara. A curiosidade indica o preconceito. Faço perguntas destravadas e inconsequentes para entender como que ele funciona.
Não termino de questioná-lo. Não haverá outro assunto, a não ser a dinâmica de sua dieta e a origem de sua dieta.
E descubro, no fundo, que ele odeia ser chamado de vegetariano, que deveria estudar antes de falar bobagem.
Pois o vegetariano tem mais facções que o PT e todas as alas brigam pelo poder da velhice.
É o semivegetarianismo, o ovolactovegetarianismo, o lactovegetarianismo, o ovovegetarianismo, o vegetarianismo semiestrito e o vegetarianismo estrito.
Viver já foi bem mais fácil, e conviver também.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17320