Blog do Carpinejar

O ACASO FACILITA O AMOR, MAS NÃO DECIDE


Arte de Fatturi


Nosso primeiro encontro foi num café. Mas não aceitamos mentiras.

O café era eufemismo de pina colada e uísque. Trocamos a cafeteria pelo bar da frente.

O garçom não captou a mudança de humor.

Atravessamos a rua já de mãos dadas.

Antes mesmo de sentar, antes mesmo de conversar, nos beijamos na escadaria.

Um beijo longo como se fosse o corrimão da rua inteira.

Jamais beijei uma estranha sem palavras. Jamais beijei assim, com o beijo sendo a própria palavra.

A realidade nos favorecia. A realidade nos apressava. A realidade nos queria próximos.

Uma série de sortilégios se acumulou em nossos ombros.

Você se apresentou como marinheira. Minha ex-esposa tinha uma marinheira tatuada na perna e sempre brincava que só a largaria para ficar com a marinheira. A marinheira era exatamente o desenho de seu rosto.

Você tremia, eu ria.

Tremer é rir silencioso.

Nossa pele concordava com o toque. A intimidade sabotava as perguntas.

Dei meu anel de caveira. Entortei o ferro em forma de coração. Você colocou na carteira. Fui mexer em sua identidade. Não se olha bolsa de mulher, muito menos a carteira. Não sei o que passou pela minha cabeça, mas mexi, invadi e achei um bloco com sua letra. Nele, descrevia profecias de uma cartomante que visitou há três semanas. Pretendia conferir os presságios, por isso anotou, por isso guardou entre os documentos.

Afora doenças e preocupações com a saúde dos familiares, ela me retratava perfeitamente: alto, claro, careca, com filha adulta, tatuagens e acessórios, estável financeiramente, e com uma mão diferente da outra (as unhas pintadas), que seria o homem de sua maturidade, que você iria casar e morar junto.

Eu via o futuro antes mesmo do presente. Novamente o beijo antes das palavras.

Naquela semana, escrevi crônicas usando cartas de tarô. E antecipava que amaria uma Sacerdotisa e me nomeava como o Louco. Como que pode tamanha sincronia?

As últimas horas pareciam pressentimentos de nossas vidas entrelaçadas.

Tudo tudo gerava sentido para nossa união. Minha mania de segurar os potes pelas tampas, sua mania de respirar pela boca, minha mania de colocar os travesseiros por debaixo dos lençóis, sua mania de gritar para espantar os mosquitos como se eles escutassem, minha coleção de pinóquios, sua coleção de ovelhas.

Falamos de Pink Floyd, que você e eu ouvíamos na adolescência, banda que mais abalou nossas convicções. Não é que o quarteto do pub encerra sua apresentação tocando Dark Side of the Moon.

Nossa estreia surgia antiga, inverossímil, ensaiada.

Contei que dividia o destino amoroso em três telefones: o preto, o vermelho e o amarelo. O preto é quando forçamos o amor pela carência. O vermelho é quando o amor é agradável e fingimos urgência. O amarelo é a linha que todos temem: quando toca, é o amor raro, louco, acima de nossas vontades.

Na manhã seguinte, depois de não dormir, mandei rosas e lírios amarelos para seu trabalho, com um bilhete: Atenda!.

Nosso primeiro encontro foi sublime.

Mas as coincidências nunca serão nada sem a coragem. A trama de acasos nos ajudando nunca fará diferença sem a coragem. Os avisos dos astros nunca serão contundentes sem a coragem.

Sem a coragem, não existiremos.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 7/04/2013 Edição N° 17395

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