Blog do Carpinejar

O BARULHO É NO ANDAR DE CIMA

Arte de Tereza Yamashita


Enfrento alguns defeitos básicos.

Um deles é derramar água quando coloco a fôrma de gelo de volta. Vou empoçar a cozinha e molhar os pés.

São décadas cumprindo vagarosamente os passos da pia até a geladeira e sempre desequilibro na última hora, seja ao abrir o congelador, seja ao procurar uma fresta entre as comidas e o pote de sorvete. A ordem é frágil. Atinjo o cume, finco a bandeira e um desmoronamento de neve termina com a paz.

Não é saudável minha insistência, porém odeio fracassar. Não tem sensação pior do que se enganar e mentir aos outros para tentar se convencer.

Talvez não faça questão de sair de uma crise e goste realmente do pessimismo. São hipóteses para fugir das certezas desagradáveis.

Já sondei fazer um curso ou assumir a função de garçom nas férias para efetivar o equilíbrio. Duas coisas se deve ensinar ao filho para evitar frustrações sexuais no futuro: amarrar o tênis e guardar o gelo. O resto ele aprende sozinho.

Durante a contratação pela universidade, agendaram com incrível antecedência o teste psicotécnico. O RH garantia um privilégio e concedeu duas semanas de preparação. Ou seja, uma quinzena para exercitar minha paranoia e refinar o bruxismo.

Não posso esperar muito tempo senão apodreço. Acalentei pesadelos por noites seguidas em que o teste admissional seria caminhar com a bandejinha cheia por todo o campus. Acordava gelado.

Não ria de mim, aquilo não é fácil, é um dos mais horrendos crimes da civilização, ao lado dos buracos da camada de ozônio. É a força do Inconsciente Coletivo pesando os braços.

Antecedentes devem puxar nossa espinha. Reencontramos nas vértebras os arrepios dos condenados injustamente pela Inquisição enquanto caminhavam para o cadafalso.

Eu me vejo próximo da tosse de Giordano Bruno, primo do suspiro de Joana D’Arc.

O problema não é meu, ninguém deseja renovar a bandeja — na maioria das vezes, encontro a morrinha com duas ou três lascas. O familiar usa e devolve como se não houvesse nenhum desfalque. É a maior cara-de-pau.

Deixa o suficiente para seu uísque de madrugada, e só. Claro que descobriremos os tabletes vazios tarde demais, no momento de receber visitas e retornar do mercado com as garrafas quentes do refrigerante.

A generosidade do casal não está nas atitudes ostensivas que fazem parte do repertório de provocação e que permitem flagrantes como trocar o papel higiênico ou não largar a toalha molhada na cama ou manter seca a tampa da privada.

Generosa é a substituição do gelo, uma ação sem sabor e transparente como a água. Discreta, qualquer um pode disfarçar e fingir desinteresse.

Contrariar pequenas preguiças traz sobrevida amorosa. Repondo as pedras, asseguramos a longevidade da relação.


Crônica publicada no site Vida Breve

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